Depoimento
Delegado da Polícia Civil, que pediu para não ser identificado
"Como cidadão e membro da instituição Polícia Civil, fiquei perplexo pelas denúncias oferecidas pela Gazeta do Povo nos últimos dias. Fico envergonhado pela conduta inadequada e imoral de alguns servidores da vital área da segurança pública. Contudo, tenho convicção que tais denúncias servirão para uma mudança na Polícia Civil, tornando-a mais transparente, competente, eficaz e, sobretudo, mais zelosa com o dinheiro público. Espero que todos os policiais tenham consciência de que são servidores públicos, e de que, apesar de todas as dificuldades (falta de estrutura dos prédios, viaturas sucateadas, falta de pessoal, ausência de garantias), nosso dever é atender bem a população, buscando dentro dos limites legais a elucidação dos crimes, contribuindo para a tão almejada melhoria na sociedade paranaense e brasileira".
Reação
Delegados repudiam denúncias
A Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) e o Sindicato dos Delegados (Sidepol) emitiram carta repudiando as denúncias apresentadas pela Gazeta do Povo. Na avaliação das entidades, a série "Polícia Fora da Lei" generalizou condutas e desqualificou a Polícia Civil. Nem todos os delegados têm a mesma opinião, conforme as diversas manifestações favoráveis à reportagem recebidas pelo jornal (leia um dos exemplos nesta página). Além disso, o nome da série faz referência a uma parte e não ao todo. As reportagens mostram que há condutas dentro da instituição que não estão de acordo com a lei e em nenhum momento afirmam que os desvios são cometidos por toda a polícia.
A nota, assinada pelo presidente do Sidepol, delegado Jairo Estorílio, diz que a reportagem apresenta indícios de irregularidades em quatro unidades da Polícia Civil, que corresponderiam a 3% das delegacias. Entretanto, a reportagem visitou 16 cidades em diferentes regiões do estado e constatou que em nenhuma delas os recursos do fundo rotativo eram aplicados nas delegacias a que eram destinados.
Além disso, o banco de dados disponibilizado no site especial www.gazetadopovo.com.br/policiaforadalei demonstra que 205 cidades paranaenses não têm policiais civis. Apesar disso, as delegacias desses municípios consumiram R$ 22,6 milhões nos últimos oito anos.
A carta divulgada pelas entidades alega que as "verbas de consumo" são genéricas e que um recurso destinado à aquisição de combustíveis pode ser usado na compra de materiais de higiene, por exemplo. Segundo a nota, pode ter havido um "erro formal", mas "não há até agora nenhum indício de apropriação dos recursos públicos".
Especialistas em Direito Público e Direito Penal apontam que há indícios de improbidade administrativa e crimes de peculato e desvio de verbas públicas. Ontem, o Ministério Público e o Tribunal de Contas anunciaram que vão investigar a aplicação do fundo rotativo da Polícia Civil. O governador também garantiu que as denúncias serão apuradas pela Corregedoria do Estado e que uma empresa fará uma auditoria nas contas da corporação.
Na Assembleia
Deputado tenta instalar CEI para investigar irregularidades
O deputado Tadeu Veneri (PT) está colhendo assinaturas de outros parlamentares antes de apresentar o pedido de instalação de uma Comissão Especial de Investigação (CEI) na Assembleia Legislativa do Paraná para apurar as irregularidades no fundo rotativo da Polícia Civil. A intenção do petista é conseguir o apoio do maior número possível de deputados para que o requerimento seja aprovado em plenário quando for à votação. Isso porque o líder do governo, Ademar Traiano (PSDB), já adiantou que é contra a CEI.
A casa da Rua Orlando Batista Mendes, em Calógeras, distrito de Arapoti, no Norte do Paraná, era para ser uma delegacia, mas virou a residência da família Silva. Ela pertence à Secretaria de Segurança Pública do Paraná, mas há dois anos a Polícia Civil a cedeu como moradia para Rosalvo, Célia e os três filhos do casal. Em troca, eles cuidam do imóvel. Desativada há anos, a delegacia já teve outro morador. A família não paga as contas de água e luz nem IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano).
Assista ao vídeo da família que mora na delegacia
Nos dois anos em que moram de graça na delegacia, os Silva construíram uma casa na mesma rua. "A gente até esperava pelas contas, mas nunca apareceram", diz Rosalvo. As faturas de água e luz nunca chegaram e Rosalvo não buscou saber os motivos, assim como o delegado lotado desde 2010 em Arapoti, Wellinghton Yugi Daikubara, nunca se preocupou em verificar as condições do imóvel.
Os Silva firmaram um contrato com um antigo delegado de Arapoti e se acomodoram onde ficavam as grades, levadas para outra unidade na região. Fizeram reparos no imóvel e logo se ambientaram na nova residência. Os amigos brincam com o apelido e com a casa de Rosalvo. Cantor sertanejo conhecido por sabiá, ele sorri com a zombaria. "Eles falam que o sabiá está preso na gaiola", diz aos risos. Mas essa gaiola está desgastada.
As paredes estão cheias de rachaduras, a tinta amarela, deteriorada, os vidros, quebrados, a porta, improvisada. A recepção da delegacia virou a sala de estar dos Silva, mas ainda sem luz. A iluminação vem da televisão e da porta aberta. "Quando entrei aqui, estava uma capoeira. As luzes tudo estragadas. Fui arrumando tudo, ajeitando devagar. Tudo não. Ainda ficou faltando algum reparo", explica Rosalvo. Ele estava desempregado quando foi morar na delegacia. Agora, ele e a mulher trabalham numa empresa de reflorestamento em Arapoti.
A simpatia de alguns vizinhos por Rosalvo não diminui a cobrança de outros, seja pela presença dele na delegacia ou pela pouca segurança em Calógeras. "Falta polícia aqui", diz um vizinho. "Eles são gente boa", diz outro. Mesmo Rosalvo tem uma opinião sobre o assunto. "Vou falar a verdade para você. Segurança aqui é pouca", ressalta. Para ele, seria preciso mais policiais para cuidar da segurança das crianças e dos adolescentes na escola em Calógeras. "Há muita briga lá", diz. Célia concorda e também reclama. "Coisa mais rara é você ver um carro da polícia passando aqui."
De acordo com o delegado de Arapoti, Wellinghton Yugi Daikubara, o prédio da delegacia de Calógeras estava sendo depredado na época. Segundo ele, o delegado anterior cedeu a delegacia à família para proteger o patrimônio do estado, após um funcionário da prefeitura de Arapoti interceder pelos Silva. Ele diz que por enquanto não pretende reativar a unidade de Calógeras, por causa da falta de efetivo policial.
Sindicato propõe que sociedade fiscalize o fundo rotativo
O Sindicato dos Investigadores do Paraná (Sipol) propõe que a aplicação do fundo rotativo da Polícia Civil do estado seja fiscalizada pela sociedade civil. Entidades como os conselhos de segurança (Consegs) acompanhariam os repasses das verbas destinadas à manutenção das delegacias. A proposta é uma reação às denúncias apresentadas pela Gazeta do Povo, na série "Polícia Fora da Lei".
Ontem, o Sipol enviou ofício ao deputado estadual Professor Lemos (PT) sugerindo a participação da comunidade na fiscalização do fundo rotativo. O presidente do Sipol, Roberto Ramires, conta que a ideia é que o dinheiro repassado às delegacias seja gerido nos mesmo moldes do fundo destinado às escolas estaduais. "Essa polícia tem de ser moldada para atender aos interesses da sociedade, não de delegados, escrivães e investigadores", diz.
O Sindicato das Classes Policiais Civis (Sinclapol) também se manifestou, apontando que as irregularidades denunciadas pela reportagem são históricas. Segundo o presidente do sindicato, André Gutierrez, o Sinclapol já havia ingressado com uma ação na 4ª Vara da Fazenda Pública denunciando ilegalidades no fundo rotativo. "As denúncias [da Gazeta do Povo] são pertinentes. Entramos com uma ação contra o desvio de finalidade do fundo nas delegacias em 2010", afirma. A ação, segundo ele, tramita em segundo grau.
Vergonha
Segundo Ramires, alguns indícios de irregularidades semelhantes às denunciadas pela reportagem já eram conhecidos por investigadores do estado. "É uma traição da própria chefia para com os subordinados, porque eles não têm as condições mínimas de trabalho. No entanto, o governo tem disponibilizado os recursos", afirma.
O presidente do Sipol classifica como "vergonhosos" os casos de delegacias que estão fechadas, mas que continuam a receber repasses do fundo rotativo, enquanto 205 cidades paranaenses não têm nenhum policial civil e trabalham sem infraestrutura. "O mais lamentável é que isso estoura na população pobre, que paga os impostos e que está, em alguns municípios, excluída dos serviços da Polícia Civil. Só entram para pagar a conta", observa.
VIDA E CIDADANIA | 3:58
Os habitantes de Calógeras (distrito de Arapoti) não contam há muito tempo com a Polícia Civil, porque a delegacia vem sendo usada como moradia. Há dois anos, Rosalvo e Célia Silva moram com os três filhos na unidade. Havia outra família antes deles.