O governo do Paraná decidiu mudar as regras do fundo rotativo da Polícia Civil depois das denúncias da Gazeta do Povo sobre delegacias fantasmas no estado. Em reunião extraordinária ontem à tarde no Palácio Iguaçu, o governador Beto Richa (PSDB) tratou do assunto com a cúpula das polícias Civil e Militar. Uma resolução da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) passará a gestão do fundo para 27 delegados-chefes de divisões e subdivisões policiais, uma espécie de regionais administrativas da Polícia Civil no estado. Hoje, cada delegado responsável por uma delegacia gere o dinheiro do fundo.
Richa determinou que a Corregedoria da Polícia Civil investigue as denúncias. Após a reunião, o secretário estadual de Segurança Pública, Reinaldo de Almeida César Sobrinho, o delegado-geral da Polícia Civil, Marcus Vinicius Michelotto, e o diretor do Grupo Auxiliar Financeiro (GAF), Pedro Reichembak Brito, afirmaram que o governo já estudava mudanças na administração do fundo rotativo. Essas mudanças, segundo o secretário, vão melhorar a fiscalização.
O governo deve publicar hoje no Diário Oficial do Estado a resolução que coloca a mudança em prática. "Desde 1996 se fala do problema de gestão deste fundo e, por isso, desde o início desta gestão temos nos debruçado sobre ele", ressalta Almeida César. O diretor do GAF, por sua vez, explicou que cada subdivisão policial já possui grupos de fiscalização desde o começo do ano, chamados de comissões permanentes de licitações.
Haja gasolina
Entre tantos exemplos, a reportagem expôs o caso de Cruzeiro do Sul, cuja delegacia está fechada há seis anos e ainda recebe dinheiro do fundo rotativo da Polícia Civil: R$ 75.635 nos últimos oito anos. Em nota oficial, o governo diz que o atendimento na cidade é feito pelo delegado gestor da regional de Paranacity, com uma viatura Parati, ano 2001, placa AJZ-8162. "Portanto, a verba destinada ao município é para combustível para esta viatura e outras despesas", diz a nota. O governo só não explica quais são as "outras despesas", já que a unidade está fechada.
No entanto, se os gastos em Cruzeiro do Sul forem apenas com combustível, os R$ 11.050,00 repassados no ano passado dariam 4.420 litros de gasolina, a um custo de R$ 2,50 o litro. A uma média de 8 km rodados por litro, se chegaria a 35.360 km no ano, média de 97 km por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. O curioso é que Cruzeiro do Sul fica a apenas 10 quilômetros de Paranacity e entre 2008 e 2010 não houve um inquérito sequer instaurado na cidade.
Para justificar o combustível que seria destinado ao Kadett 1993 fora de circulação em Nova Santa Rosa, o governo alega que a cota não é por viatura, mas por unidade policial. O atendimento no município, segundo a nota, vem sendo feito pela regional de Marechal Cândido Rondon com um Fiat Elba, placa ADV-0476, sob responsabilidade de um delegado designado pela subdivisão de Toledo. Esse veículo usa a cota mensal de combustível da delegacia de Nova Santa Rosa. Nesse caso, os R$ 14.300,00 destinados à unidade só no ano passado dariam 5.720 litros de gasolina, suficientes para rodar 45.760 km, o equivalente a mais de uma volta inteira ao redor da Terra.
Sobre Guaraqueçaba, o governo explica que o consumo de combustível justifica os gastos, já que a equipe da delegacia de Antonina vai ao município de barco e de carro quando necessário. A delegacia local está aos pedaços, conforme mostrou a reportagem. Ainda assim, o delegado de Antonina, Iberê Toniolo, gastou R$ 7.280 em uma placa de identificação para a unidade. O valor foi liberado em abril de 2011 e, na sexta-feira, Toniolo disse à reportagem que ela ficaria pronta hoje, um ano depois. Já o chefe do GAF, Pedro Reichembak Brito, garante que ela existe e está guardada.
Juristas apontam peculato e improbidade
As investigações realizadas pela Gazeta do Povo nas contas do fundo rotativo da Polícia Civil do Paraná apontam indícios de crime por emprego irregular de verbas públicas e de peculato de desvio, este com pena que varia de 2 a 12 anos de reclusão. Também há infrações que incorrem em improbidade administrativa. A conclusão é de cinco especialistas em Direito Público e Administrativo ouvidos pela reportagem. A origem do problema está no fato de o dinheiro sair dos cofres públicos e não chegar às delegacias às quais se destina.
"É preciso identificar onde esse dinheiro está se perdendo. Esse dinheiro sai de uma conta pública e vai para algum lugar. Nesse caminho, se alguém desvia de alguma forma, pratica o crime de peculato, o peculato de desvio", explica o advogado criminal Rodrigo Garcia, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Para os advogados entrevistados, as evidências apresentadas pela reportagem são consistentes e suficientes para suscitar investigações. Como exemplo, Garcia destaca o caso da delegacia de Cruzeiro do Sul, fechada há cinco anos, mas cujas verbas para manutenção continuam saindo dos cofres públicos. "Precisa ter uma história boa para justificar esse tipo de coisa. Em princípio, me parece difícil de ser justificado", avalia.
Em caso de comprovação desses crimes, os especialistas dão como certa a existência de uma quadrilha articulada dentro da estrutura da Polícia Civil, coordenando os desvios. "Geralmente, [as irregularidades] envolvem quem está remetendo o dinheiro, a pessoa que está recebendo, os intermediários, às vezes até uma empresa", diz o advogado Carlo Frederico Müller, especialista em crimes financeiros.
A rota dos recursos
Para os especialistas, com a divulgação dos indícios de irregularidades, a Corregedoria da Polícia Civil, o Ministério Público e o Tribunal de Contas devem, de imediato, iniciar investigações paralelas e independentes. Para Müller, as apurações devem se concentrar em refazer "o caminho do dinheiro" desde o momento em que o secretário de Segurança Pública assina a autorização de liberação dos recursos até a origem final dos valores. O especialista explica que, como as transações bancárias são criptografadas (chaves praticamente à prova de fraudes), em 99% de casos como esses se consegue chegar à conta para qual o dinheiro foi destinado.
"Com essa transação, você consegue saber: o dinheiro foi empenhado no dia tal, autorizado no dia tal, saiu no dia tal e chegou na conta tal", garante Müller. "Neste caso, não poderia jamais ser depositado em uma conta de pessoa física, porque é um repasse de verbas de um órgão estadual para uma repartição pública", ressalta.
Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Rodrigo Matheus diz que uma auditoria poderia apontar desvios ou mau uso de dinheiro público. "Mesmo que a gente não fale de desvio de dinheiro público para um particular, mas apure se não está havendo malversação de dinheiro público. Um excesso que também é uma ilegalidade", explica.
Coordenador do curso de especialização em Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o advogado Márcio Cammarosano diz que há indícios para um pente-fino do Tribunal de Contas nos repasses do fundo rotativo. O presidente da Sociedade de Brasileira de Direito Público, Carlos Ari Sundfeld, indica ainda a atuação de outras instituições. "O MP tem competência para ajuizar, por exemplo, uma ação de improbidade administrativa, fazendo mais investigações ou usando apenas os elementos da reportagem", disse.