Pacata cidade de 3,6 mil habitantes na região Norte do Paraná, Conselheiro Mairinck se diferencia das demais pelo atendimento inusitado na delegacia de polícia. Quem atende a população na ausência dos policiais é um traficante. Condenado por tráfico de drogas, Davi Alves Ribeiro é o preso de confiança responsável por vigiar os três colegas de cela. O caso está longe de ser uma exceção. Em São Pedro do Ivaí, no Norte Central do estado, também são os próprios presos que vigiam os presos. Em Cruzeiro do Sul, no Noroeste, uma dona de casa fez as vezes de carcereira.
Esses são apenas alguns exemplos de cidades onde o preso se torna "autoridade policial" devido à ausência da Polícia Civil e do reduzido efetivo da Polícia Militar. Foi Davi quem atendeu a reportagem da Gazeta do Povo no dia 18 de abril. Ele tomava sol, sentado no pátio. Os policiais militares responsáveis pela delegacia haviam saído para atender a uma ocorrência. Apenas uma mureta de um metro de altura o separava da rua. Poderia sair à hora que quisesse. "Eu sou preso também, mas estou no semiaberto. Faço comida para eles", informou Davi.
Meio sem jeito, Davi conta que na ausência dos policiais cabe a ele o papel de vigiar os demais presos. "A gente leva água, um caldo, almoço", disse. Os outros três também são condenados. "Estou quase saindo", diz. Ele foi transferido para Conselheiro Mairinck para terminar de cumprir a pena iniciada em Ibaiti, na mesma região. "Estou há dois anos e meio aqui", diz.
Quarta-feira à tarde é, tradicionalmente, folga dos policiais militares que trabalham no setor administrativo do Paraná. Durante uma hora em que a reportagem permaneceu na delegacia, eles não haviam retornado. Segundo Davi, uma policial civil que mora na cidade aparece de vez em quando na delegacia, mas está lotado em Ibaiti. Assim, cabe a ele, preso por tráfico, o papel de "autoridade policial". Um mês antes, a reportagem havia se deparado com a mesma situação em São Pedro do Ivaí.
Na cidade, a delegacia também abriga presos sem a supervisão da Polícia Civil e, na prática, funciona como um destacamento da PM. Em março, a reportagem encontrou a delegacia fechada. Num terreno anexo, de muros altos, onde estavam sete presos (seis já condenados), um homem pôs o rosto na fresta das grades e avisou que o sargento não estava. Apresentou-se como funcionário cedido pela prefeitura. Mais tarde, o sargento Ronaldo da Silva, responsável pelo destacamento, explicou tratar-se de um preso de confiança.
"Quem cuida dos presos somos nós mesmos", disse o sargento. Quando precisa atender a uma ocorrência, o policial que está no turno sai para seus afazeres e deixa os detidos sem o controle de ninguém. A situação se repete em outras cidades da mesma comarca: Kaloré, Marumbi e Bom Sucesso. Nesta última, os presos foram transferidos em fevereiro, após recorrentes tentativas de fuga. Nas demais, as transferências também já ocorreram.
Dona de casa e carcereira
Em Cruzeiro do Sul, no Noroeste, mesmo sem haver um único policial civil ou militar, a delegacia local já viveu uma situação anômala. Em 2011, o prédio abrigou presos em regime semiaberto durante oito meses. Quem cuidava deles era Vera Paula, mulher do sargento que se aposentou na unidade. Pelo serviço de carcereira, a dona de casa recebia um salário do Fórum de Paranacity. "Eu abria a porta de manhã para eles irem trabalhar. No fim do dia, voltavam e eu trancava eles dentro do prédio", relata Vera Paula.
Nesse período, Vera e o marido moravam em uma casa nos fundos da delegacia. O local chegou a abrigar cinco presos, por oito meses. Com o passar do tempo, eles começaram a "dar trabalho", com atos de indisciplina. Por causa disso, ela decidiu debandar do posto e se mudou com o marido para uma casa perto da igreja. "Os presos continuaram ali por um tempo. Faziam churrasco, colocavam música alta. Era um bafafá na cidade", lembra.
Polícia Militar tem de improvisar para suprir ausência de civis
Um de cada dez paranaenses vivem nas 205 cidades sem polícia judiciária. Só não estão abandonadas por completo porque a Polícia Militar acaba suprindo a ausência da Polícia Civil, ainda que de forma precária. Faz o trabalho no seu próprio batalhão ou nas delegacias que apresentam alguma condição de uso. A PM está preparada para o trabalho de prevenção ao crime, não para a investigação. Para esse fim é que existe a Polícia Civil, ou deveria existir nessas cidades.
De dois a quatro policiais militares se revezam em turnos de 24 por 48 horas. O plantão é feito por um cabo ou soldado, sob a supervisão de um sargento ou tenente. Quando saem para a ronda ou alguma ocorrência, a delegacia fica trancada. O policial de folga fica em sobreaviso. "Estamos fazendo [escala] 24 horas por já te pego. Deu uma bronca, o cara [policial que está de plantão] corre para te pegar em casa", explica um cabo da PM lotado em Nova Santa Rosa, na região Oeste. Sem nenhum policial civil, as pequenas cidades do Paraná também viram o efetivo da PM cair praticamente à metade em dez anos. As vagas dos que se aposentaram não foram preenchidas.
Delegacias de cidades como Jardim Olinda, Uniflor e Presidente Castelo Branco, no Noroeste do Paraná, não estão integradas com a rede da PM, da Polícia Civil, ou da Secretaria de Segurança Pública (Sesp). Isso porque os computadores pertencem aos próprios policiais ou foram cedidos pela prefeitura. "O computador é particular. O notebook é meu. Gasto com internet, que não é do Estado", explica um militar.
Sem acesso ao sistema on-line da Sesp, os boletins de ocorrência são manuscritos em formulários da PM. Quando acumulam, os policiais vão à delegacia da sede da comarca para registrá-los no sistema. Fazem duas viagens por semana, em média. "Se precisar, abre o inquérito policial por lá [sede da comarca]", diz um soldado de Jardim Olinda. Em cidades como Entre Rios do Oeste e Pato Bragado, no Oeste, as delegacias contam com um estagiário de Direito pago pela prefeitura. Ele faz o papel de escrivão ad hoc da Polícia Civil e adianta os processos que seriam feitos exclusivamente na delegacia da sede da comarca.
O trabalho da Polícia Civil sobra para os militares. "A gente consegue fazer [investigação] porque está na cidade. O fato de estar patrulhando você vê, conversa, vê o movimento. Agora, quando precisa atender uma ocorrência, não consegue fazer investigação", explica um militar de Perobal. Como não são casos complexos, os militares concordam que não se justifica o gasto com uma estrutura da Polícia Civil. "Ter uma estrutura só por ter não adianta. O que resolveria seria mais efetivo da PM, em patrulhamento e atendimento de urgência", diz um soldado de Indianópolis.
VIDA E CIDADANIA | 1:45
Na cidade de Conselheiro Mairinck, quem cuida dos três presos na delegacia é o traficante Davi Alves Ribeiro. Esse é apenas um exemplo de cidades onde o preso se torna "autoridade policial" devido à ausência da Polícia Civil e do reduzido efeito da PM.