Um movimento nacional em defesa da linguagem neutra (chamada também de linguagem não binária) tem se articulado para estimular o uso do dialeto. Alvo de críticas por parte de especialistas na língua portuguesa, a linguagem tem sido fomentada por ativistas políticos especialmente em ambientes universitários e culturais.
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O episódio mais recente envolvendo o tema ocorreu após o perfil oficial do Museu da Língua Portuguesa fazer uma publicação nas redes sociais com uso da linguagem neutra. A postagem foi alvo de numerosas críticas, mas foi defendida pelo secretário de cultura de São Paulo, Sérgio Sá Leitão, que sugeriu que o uso do dialeto teria algo de científico – alegação que é refutada por linguistas consultados pela reportagem.
Ativistas que militam pela incorporação de palavras do dialeto – como “todes”, “menine”, “elu” e “elx” – à língua portuguesa sustentam que isso se traduz em inclusão a pessoas não binárias, ou seja, que não se reconhecem nem como mulher nem como homem.
Para esclarecer os impactos de uma eventual adesão maciça ao dialeto, a Gazeta do Povo conversou com a professora de língua portuguesa Kátia Simone Benedetti, especialista em psicopedagogia, pesquisadora de metodologias de alfabetização e autora do livro “A falácia socioconstrutivista: por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escrever”.
Qual é a avaliação que você faz das tentativas de implementação da linguagem neutra à língua portuguesa? Essa medida é positiva ou negativa?
Kátia Benedetti: Acho que a imposição do uso do gênero neutro é duplamente negativa. Em primeiro lugar, do ponto de vista da linguagem em si, é uma empreitada fadada ao fracasso, pelo menos em curto e médio prazo, uma vez que a língua tem seus próprios mecanismos de mudança e estes não incluem mudanças impositivas, artificiais e incoerentes com a sua estrutura gramatical. Vale dizer que a imposição do uso do gênero neutro numa língua cuja gramática possui marcação binária de gênero, como o português, é incoerente.
Em segundo lugar, do ponto de vista do seu objetivo social, essa imposição na linguagem como estratégia de combate a preconceitos e discriminações é inútil, pois preconceito e discriminação não são inerentes às características gramaticais de uma língua natural, mas expressam características comportamentais de nossa espécie, manifestas por meio de sistemas de crenças e valores, e concretizadas por falhas dos sistemas jurídico e penal.
Ou seja: crenças, valores e repertório comportamental não são
condicionados por aspectos da estrutura gramatical das línguas. Portanto,
tentar transformar uma língua
natural, falada em um país de proporções continentais, não é uma medida
eficiente para combater e inibir casos de discriminação.
Defensores dessa linguagem costumam afirmar que sua implementação faz parte da evolução natural da língua portuguesa. Isso procede? Em quais ocasiões são admitidas essas mudanças na língua?
Kátia Benedetti: Não. A língua é independente da vontade política ou ideológica de grupos diversos. Ela muda por seus próprios meios e estes se baseiam nas necessidades concretas, e não ideológicas, do dia a dia.
Por exemplo: com o advento das tecnologias, novas palavras foram sendo criadas e incorporadas à língua, devido às demandas da realidade concreta: clicar, tuitar, etc. E outras foram adquirindo novos significados: curtir, postar, baixar e abrir (arquivos), entre outras. Uma vez que essas mudanças acontecem assentadas nas necessidades concretas, elas não são incoerentes ou inconsistentes com o restante da estrutura linguística. Mas as alterações impostas, como essa do gênero neutro, sim.
Alterações impostas são artificiais e, portanto, inconsistentes com a própria natureza estrutural da língua, desenvolvida espontaneamente, por meio do uso cotidiano, no decorrer dos séculos.
Nesse caso em específico, ele esbarra no problema do binarismo de gênero que é intrínseco ao português e que se manifesta nos determinantes linguísticos (os artigos que precedem os substantivos) e em os outros adjuntos nominais (adjetivos e pronomes adjetivos), que só possuem dois gêneros.
Ou seja: não adianta criar palavras como “amigues”, pois, inevitavelmente, as pessoas irão usá-las precedidas de artigo ou de pronome adjetivo que carrega sua marcação de gênero, que é intrínseca à estrutura da nossa língua. Como exemplos: as amigues, os amigues, um amigue, meus amigues.
Em outras palavras, não é possível impor mudanças artificiais à estrutura da linguagem, pois essa estrutura está de tal forma entremeada à nossa cognição que isso se torna um esforço inútil. É diferente, por exemplo, de línguas que, ou não possuem marcação de gênero em seus determinantes, ou possuem a marcação de gênero neutro e, portanto, toda sua estrutura gramatical inclui essa marcação (substantivos, determinantes e pronomes) e não apenas os substantivos.
Além disso, quem acredita que é possível mudar uma língua apenas por meio de mudanças no léxico ignora que as línguas naturais são sistemas complexos integrados por diversos níveis que fazem interface entre si, condicionando-se mutuamente: nível fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático-discursivo. Alterações no nível pragmático-discursivo, por mais insistentes que sejam, não atingem os demais níveis linguísticos, mais básicos e fundamentais, a não ser depois de séculos de uso por toda uma comunidade, e desde que as alterações sejam consoantes com a cognição linguística dos falantes.
Na sua avaliação, quais são os principais problemas decorrentes da incorporação desse vocabulário não binário na língua portuguesa?
Kátia Benedetti: Essas imposições desconsideram a realidade psíquica, cognitiva da linguagem: a marcação binária de gênero na língua portuguesa é, antes de tudo, uma realidade de nosso psiquismo, de nossa cognição linguística, pois nascemos e crescemos imersos nessa estrutura linguística binária e a tendência de pensarmos linguisticamente dessa maneira é imperativa.
Outro problema é a confusão do gênero gramatical, expresso nas palavras, com o gênero biológico. Veja: o gênero gramatical de palavras como motorista, artista, criança, desenhista, malabarista, entre outras, não impede que essas palavras se refiram aos dois sexos biológicos.
E ainda: o poeta, o segurança, o elefante, o almirante – substantivos terminados em “a” e “e” – são palavras masculinas. Assim, o máximo que pode acontecer é, por meio do uso, palavras como “amigues”, “elu” ou “elx” e outras passem a integrar o vocabulário popular. Mas a noção de gênero masculino-feminino estará lá, implícita, pois é um fato da nossa cognição linguística, do nosso psiquismo, formado a partir de nossa imersão na língua portuguesa, a qual tem apenas dois gêneros gramaticais.
Outro fato a ser destacado é que, para a maior parte da população falante de português, “elu” ou “elx” podem soar como palavras masculinas, devido às suas características fonéticas e também à tendência natural do português de atribuir gênero gramatical masculino à maioria das palavras.
Isso, no entanto, não implica sexismo, pois não há equivalência com o gênero biológico masculino. Quando falamos “o” barril, “o” sofá, “a” cadeira, “a” mesa, não associamos gênero biológico a esses objetos, a despeito de essas palavras possuírem gênero gramatical.
Portanto, tentar combater preconceito e violência com mudanças desse tipo na linguagem é a pior estratégia para se combater esses problemas sociais. Mudar a linguagem não vai mudar nem as condições sociais, nem a natureza das pessoas preconceituosas. Responsabilidade legal, sim.
Em termos pedagógicos, quais são os danos à aprendizagem das crianças ao politizar a língua portuguesa dessa maneira?
Kátia Benedetti: Essa imposição acarretará uma complicação a mais a ser trabalhada nas aulas de Língua Portuguesa, afinal, enquanto falantes nativos do português, as crianças chegam à escola com uma cognição linguística baseada na estrutura gramatical da nossa língua, que é binária.
Linguistas que realmente conhecem como a linguagem e o pensamento são processados pelo cérebro não aderem a essa falácia de equiparar o gênero lexical (parte da cognição linguística, parte da gramática mental) com os conceitos sobre papéis sociais e identidades a que cada um de nós adere na vida.
Além disso, incluir a discussão sobre gênero neutro em sala de aula é sair do âmbito do estudo da linguagem para adentrar uma discussão de natureza ideológica. Tal discussão, além de não dizer respeito ao estudo da linguagem em si, apresenta novas complicações ao processo de ensino aprendizagem, porque mistura e confunde dois constructos distintos: gênero gramatical e gênero biológico.
Há prejuízos a outros grupos considerados minoritários, como cegos, surdos, ou até mesmo disléxicos, que podem ter dificuldades ao compreender termos derivados da linguagem neutra?
Kátia Benedetti: Sim, claro. O ensino das peculiaridades da Língua já apresenta seus desafios a professores e alunos. No caso do estudo da marcação de gênero, a “problematização” do gênero neutro só faz confundir a identificação e a compreensão, pelos alunos, das características intrínsecas da linguagem.
O estudo da Língua já enfrenta o desafio de levar as crianças a desenvolver capacidades metalinguísticas e, no caso de crianças com necessidades especiais, esse desafio é ainda maior. Portanto, esse tipo de problematização só faz confundir o foco dos alunos na reflexão metalinguística, aumentando ainda mais suas dificuldades.
Na sua avaliação, a linguagem não-binária é um modismo que tende a desaparecer com o tempo ou é algo que pode vir a ser assimilado ao idioma como resultado do lobby de grupos ideológicos?
Kátia Benedetti: É um modismo, sem dúvida. No entanto, não sei se será um movimento sem quaisquer resultados em longo prazo, uma vez que, com as redes sociais, a disseminação de ideias e de novos vocabulários acontece de maneira muito rápida e efetiva, principalmente entre as gerações mais novas.
Minha intuição é que muitas palavras “neutras” acabarão sendo criadas e usadas por determinados grupos sociais e, com o tempo, poderão até acabar sendo incorporadas ao léxico da língua. No entanto, mesmo com as novas maneiras de se usar a linguagem nas redes sociais, acho pouco provável que a estrutura gramatical binária de nosso idioma seja mudada a partir da militância de alguns grupos sociais, pelo menos não no prazo de algumas décadas. As línguas naturais são condicionadas muito mais pela natureza da cognição humana – pela maneira como nosso cérebro compreende e apreende o mundo físico e social – do que por apelos ideológicos.
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