Na Floresta Amazônica, extensas áreas passam boa parte do ano com o solo coberto pelas águas das cheias do rios da região. No Pantanal, o cenário também se repete sazonalmente. Mas, apesar dos importantes serviços ambientais, econômicos e sociais que estas florestas alagadas e áreas úmidas prestam, o Brasil não tem uma legislação específica para protegê-las e o texto do novo Código Florestal em discussão no Congresso Nacional deixa a porta aberta para a exploração delas de forma desenfreada, alertam especialistas.
Desde 1989, a Lei 7.803 define como áreas de preservação permanente faixas ao longo de rios que variam de acordo com a largura dos cursos d'água. Para os rios mais estreitos, com até 10 metros de largura, ela é de 30 metros a partir de seu nível mais alto, isto é, de suas margens nas épocas de cheia, chegando a 500 metros de cada lado para os rios com largura superior a 600 metros. O novo código, no entanto, não só reduz para 15 metros a área de proteção nos rios com menos de cinco metros de largura, que compreendem mais de 50% dos cursos d'água do país, como define que ela deve ser medida "desde a borda do leito menor" dos rios, deixando aberta a interpretação de que ela deve ser contada a partir das suas margens nos períodos de seca.
"Na ambiguidade, a Natureza sempre acaba perdendo", lembra Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). "O que é esse "leito menor"? Vão fazer uma média entre os períodos de alta e baixa dos rios? Esta mudança na definição das margens vai deixar desprotegidos pelo menos 500 mil quilômetros quadrados de florestas alagadas e áreas úmidas em todo país."
Segundo Candotti, a situação é especialmente preocupante na Amazônia, já que os rios da região apresentam grande variação nos seus níveis entre os períodos de cheia e de seca, chegando a 20 metros em alguns casos.
"Em geral, para os rios do Sul e do Sudeste, isso pode não fazer muita diferença, mas para os rios amazônicos ela é enorme, já que as variações entre as margens altas e baixas podem chegar a dezenas de quilômetros."
Sobe e desce de rios funciona como um coração
O sobe e desce das águas dos rios da Amazônia é semelhante ao pulso gerado pela batidas do coração no corpo humano, levando vida para toda floresta, compara Maria Teresa Fernandez Piedade, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). De acordo com ela, só na região, 400 mil quilômetros quadrados de selva estão diretamente associados aos grandes rios e suas cheias. Essa área pode ser subdividida em dois grupos: as florestas de várzea ao longo da calha dos rios Amazonas e Solimões, que recebem sedimentos muito férteis dos Andes; e os chamados "igapós", banhados por rios de águas pretas como o Rio Negro, vindos de formações geológicas mais antigas e por isso menos férteis e com ocupação humana menor.
"Registros ao longo de mais de cem anos mostram que a amplitude média dos rios da Amazônia entre os picos de cheia e de seca chega a dez metros", conta. "Este processo de "pulso" regular dos rios é responsável pela fertilização das várzeas, que são usadas pelas populações ribeirinhas. São práticas tradicionais e em alguns casos milenares que devem ser controladas e preservadas."
O projeto do novo Código Florestal, no entanto, estabelece que a várzea fora dos limites contados a partir do leito menor dos rios não deve ser mais considerada área de preservação permanente, colocando em risco não só a natureza como o modo de vida destas populações, afirma Maria Teresa. "Só nas áreas de várzea, os levantamentos indicam que elas abrigam mais de mil espécies de árvores, e na dos igapós, mais de 600 espécies", enumera.
"É importante salientar que essas espécies não são as mesmas que ocorrem na floresta de terra firme, sendo únicas e disitintas. Não sabemos que segredos essa diversidade pode guardar e temos muito ainda por conhecer sobre ela."
Assim como Ennio Candotti, do Museu da Amazônia, a pesquisadora do Inpa alerta para a necessidade de criar uma legislação específica para proteger essas áreas úmidas. "Nós somos pagos para fazer ciência e agora estamos mostrando informações que levamos anos para ter", diz. "Assim, creio que elas devem ser levadas em consideração na hora de uma decisão como esta do novo Código Florestal. O Brasil vive dizendo que tem a maior bacia hidrográfica do mundo, que é a 'Arábia Saudita' da água, mas quantidade não quer dizer qualidade. O país tem que abraçar suas áreas úmidas e elas devem ser no mínimo contempladas na nova lei."
Todos os três especialistas também destacaram o fato de o Brasil ser signatário do Tratado Ramsar, que estabelece a proteção e uso racional de áreas úmidas em todo planeta. No país, entre as áreas úmidas que estão listadas como de importância internacional dentro do tratado, figuram a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, com mais de 1,1 milhão de hectares no Amazonas; o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, com 135 mil hectares; a Área de Proteção Ambiental Baixada Maranhense, com 1,77 milhão de hectares, e as Reentrâncias Maranhenses, com quase 2,7 milhão de hectares.
"O tratado fala de conservação e uso racional, não de preservação, que essas áreas tenham que ficar intocadas", destaca Cátia Nunes da Cunha, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Áreas Úmidas. "É um tratado internacional porque esses ambientes atravessam fronteiras. As áreas úmidas são ao mesmo tempo patrimônio e recurso. Se as regras não são bem claras, as consequências podem ser grandes. Precisamos que a legislação seja clara e específica. Candotti segue a mesma linha: "Uma lei não muito clara deixa espaço para o desvio. Seria um grande desastre deixar essas grandes áreas úmidas e de várzea fora de um sistema de proteção. Isso pode ter consequências muito severas não só para a biodiversidade como para a hidrologia destas regiões, com repercussões imediatas em seu microclima. É inacreditável que isso não esteja sendo discutido no âmbito do novo Código Florestal. Estamos fazendo diversos alertas sobre isso, mas até agora ninguém teve a coragem de responder a essas questões."
Para Maria Teresa, o fato de as formas básicas de inundação da Amazônia e do Pantanal serem diferentes - transbordamento dos rios no primeiro caso e acúmulo de água no segundo - pode fazer com que o código, por si só, não dê conta de todas as necessidades específicas de cada um deles. "Acho muito difícil um único Código Florestal detalhar tudo e, por isso, precisamos de legislações específicas para áreas que são diferentes, com usos e tradições diferentes", reconhece. "Em uma escala pequena, a agricultura das comunidades ribeirinhas pode ser absorvida pelo meio ambiente, assim como a pesca. Mas todos são ambientes que têm uma relação com a água que permite o estabelecimento de fauna e floras únicas que merecem atenção."
Segundo Candotti, esse argumento de que as várzeas já são usadas para a agricultura e por isso devem ser liberadas de proteção obrigatória por lei não se sustenta. "Não é porque isso existe que se deve desproteger tudo", conclui. "O importante é que a legislação preveja esse uso tradicional da terra."No Pantanal, cursos rasos chegam a secar
No Pantanal, a preocupação com as alterações previstas no novo Código Florestal também é grande. Cátia Nunes da Cunha, da UFMT, destaca que, na região, alguns rios chegam a secar na época de baixa, fazendo com que a nova redação da lei que prevê o estabelecimento das áreas de proteção permanente a partir de seu "leito menor" deixe de fora extensas áreas atualmente protegidas. Segundo ela, dos 140 mil quilômetros quadrados do bioma, até 100 mil quilômetros quadrados estão em risco. "No Pantanal, os rios são muito rasos e durante a fase seca alguns chegam a ter seu fluxo interrompido", diz. "O antigo Código Florestal, por mais que seja omisso sobre as áreas úmidas, ainda assim as protege. Com a nova lei, no entanto, pelo menos 80% do Pantanal não vão ter mais qualquer tipo de proteção."
Na opinião de Cátia, dá-se muita atenção para o problema da Amazônia enquanto a região do Pantanal fica relegada a um segundo plano. "Esquecem que as características de áreas inundáveis savânicas como o Pantanal diferem de outros biomas", conta. "Essas áreas úmidas têm um papel significativo para o meio ambiente, a começar da água. Elas atuam como filtros, retendo sedimentos, e armazenam água para as épocas de seca e apara abastecer os lençóis freáticos. Isso sem contar com a biodiversidade ímpar e específica destes ambientes, com pássaros e outros animais aquáticos e também plantas especialmente adaptadas."
A professora da UFMT lembra ainda que, pela Constituição Federal, o Pantanal é considerado Patrimônio Nacional, exigindo que o uso de seus recursos siga regras definidas. O problema, conta, é que com isso o estado do Mato Grosso considerou que poderia legislar sobre a região e, com a Lei 8830 aprovada em 2008, definiu que as faixas marginais de preservação ambiental seriam contadas a partir do nível mais alto dos rios, só que durante o período sazonal de seca. "A lei cometeu um erro grave e é um contrassenso", afirma Cátia. "Isso nos remete a esse novo Código Florestal. Até então, a gestão do Pantanal levava em consideração um consenso científico e a lei adiantou o que podemos vir a observar se o novo código for aprovado."
Segundo ela, pelo fato de a lei ser relativamente recente e a área alagável do Pantanal não ser muito adequada para a agricultura, prestando-se mais à pecuária, o estrago observado ainda não é grande, mas tudo pode mudar rapidamente. "A terra no Pantanal é muito barata, saindo por cerca de R$ 130 por hectare, contra até R$ 10 mil por hectare em regiões mais propícias para cultivos", contabiliza.
"Os avanços nas tecnologia de drenagem, porém, podem compensar essa diferença e gerar uma situação perigosa para o Pantanal."
Diante disso, Cátia pede a criação de uma legislação específica para proteger as áreas úmidas do país: "As áreas úmidas devem ter um tratamento diferenciado pela legislação. As áreas de proteção permanente do antigo Código Florestal valiam para qualquer tipo de vegetação e não só florestas. Mas, como o Cerrado não é considerado floresta, ele fica ainda mais desprotegido mesmo estando em uma área úmida."