Um ano depois de completar um século, o Palácio Belvedere permanece longe da imponência que sugerem suas linhas arquitetônicas em estilo art nouveau. Repassado à administração da Academia Paranaense de Letras, o edifício localizado na Praça João Cândido, em Curitiba, aguarda reforma. As pichações voltaram à fachada e, mais que isso, o terraço do prédio histórico foi ocupado por um homem de 25 anos, que cresceu nas ruas. A namorada dele e outra moradora de rua também passaram a viver no anexo.
Sem ter para onde ir, Davi se aloja no Belvedere. Veja fotos
Foi depois de perder o emprego em uma empresa de galvanização e recair no uso do crack que David Oliveira de Jesus, de 25 anos, voltou a viver nas ruas. Sem alternativas, um mês atrás, viu que o Belvedere podia lhe servir de teto. Limpou a imundície que havia no terraço – de tantos moradores de rua que faziam ali suas necessidades – e passou a morar no local. Com hastes de metal e cobertores, improvisou uma cabana, indiferente à importância do prédio.
“É... eu moro em um palácio, mas não tem nada de legal em morar nessas condições. Os turistas é que ficam meio encabulados. Passam olhando”, disse. “Mas pelo menos a gente cuida. Antes, isso aqui estava um nojo”, acrescentou.
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Leia a matéria completaJesus está acostumado à rotina das ruas. Aos oito anos de idade, ele e três irmãos se viram obrigados a sair de casa, por motivos que prefere não revelar. Com a naturalidade de quem conta algo normal diz que dormiam sob marquises ou mesmo na calçada. Suportar o frio, a chuva e a fome eram desafios cotidianos. “Eu me criei num mundo de violência. Eu e meus irmãos nos juntamos a outras crianças e um cuidava do outro. Era assim pra sobreviver”, afirma.
Nesse contexto, conheceu o crack ainda adolescente, mas, após conseguir parar, arranjou emprego. Trabalhou, principalmente, como pedreiro e serralheiro. Saiu das ruas e chegou a estudar, mas teve duas recaídas bem amargas.
Na primeira, foi preso em flagrante enquanto tentava assaltar com uma faca um frequentador do Parque Barigui. “Eu estava na pedra [crack] e a falta foi mais forte”, justificou-se. Após cumprir quatro anos de pena, reestruturou sua vida, mas recaiu no uso do crack novamente. Desta vez, perdeu emprego e se viu, de novo, na rua.
A companheira de Jesus – que tem 24 anos e prefere não se identificar – resolveu deixar a família para trás e seguir o rapaz. Mudou-se também para a cabana improvisada no terraço do Belvedere. A equação familiar é complexa: ele tem três filhos de relacionamentos anteriores, que vivem com as respectivas mães; a jovem tem quatro, que estão com a mãe dela. Juntos há nove meses, eles têm um desejo em comum: cada um arrumar um emprego e formar uma família.
“Tudo que a gente precisa é um emprego. Só com um emprego pra gente sair dessa, ter condição de ficar com os filhos, ficar de boa, fazer família mesmo”, aponta Jesus. “Às vezes, a gente vai pedir e a pessoa diz: ‘Vai trabalhar!’. Mas cadê o emprego? As pessoas acham que a gente está aqui porque a gente quer. Ninguém gosta de viver assim, não”, contou.
Em um apelo, pediu uma oportunidade. “A gente faz qualquer coisa, mas a gente precisa e quer trabalhar. A gente só precisa disso: de alguém que veja a gente e ofereça essa chance”, apontou.
Os desafios do “casamento” sob o terraço do Belvedere
David Oliveira de Jesus conheceu a namorada de uma forma pouco convencional. Ele estava preso no Complexo Penal de Piraquara, quando conheceu o tio da jovem, que também cumpria pena. O colega de penitenciária passou o número de telefone dela, para o qual Jesus se apressou por ligar, num dos celulares que entram nas celas. Dizia que, assim que ganhasse liberdade, a procuraria e ficariam juntos. Ela duvidava.
“Eu tinha um pé atrás. Preso fica carente, vem com esse papo. A gente nunca sabe”, disse a mulher.
No Natal do ano passado, Jesus telefonou novamente para a garota, mas desta vez já em liberdade. Encontraram-se em no dia 2 de janeiro e acabaram ficando juntos. Por um período, moraram na casa da mãe dela, mas assim que o rapaz voltou a usar drogas e perdeu o emprego, foi obrigado a sair. Semanas depois que ele se estabeleceu no Belvedere, ela foi atrás.
“A gente se gosta muito, mas eu me culpo muito por ter trazido ela pra esse lugar errado, pra essa condições. Eu me culpo bastante, não por mim, mas por ela”, desabafou Jesus.
“A minha família não aceita [o relacionamento]. Tudo poderia ter sido diferente. Agora, não tem mais volta. Não posso mais voltar lá”, completou a garota.
Eles tentam manter o terraço do Belvedere com ares de casa. Uma vassoura e uma lixeira indicam que fazem um esforço para manter o espaço em ordem. “Não é porque a gente mora na rua que a gente tem que ser porco”, diz ela. Dividem um colchão dentro da cabana articulada por Jesus, ao lado do abrigo de outra moradora de rua, a quem chamam de “Tia”. Os poucos pertences – uma mala de roupas, cobertas e tênis perfilados – ficam amontoados no canto, esperando o sonhado novo lar.
Revitalização deve ser concluída até o início do ano que vem
A administração do Palácio Belvedere foi repassada à Academia Paranaense de Letras no ano passado, por meio de uma lei que cedeu o uso do espaço por 20 anos à instituição. A presidente da Associação, Chloris Casagrande Justen, disse que o imóvel não estava em condições de receber a entidade e que, por isso, precisava passar por reforma, acompanhada de restauração.
“Como o edifício é tombado como patrimônio histórico, as intervenções têm uma série de limitações. Mas espera-se que até o fim deste ano ou, no mais tardar, no início do ano que vem, o palácio esteja pronto para a gente se instalar”, disse.
Além das obras, toda a Praça João Cândido deve ser revitalizada, nos moldes da Rua São Francisco. No primeiro piso do Belvedere, deve funcionar um café, com cardápio voltado exclusivamente à gastronomia paranaense. No andar superior, devem se concentrar as atividades da Academia. “As pichações nos preocupam muito, por isso acreditamos nessa parceria com a prefeitura e o governo do estado. O Belvedere vai ser um ponto alto da nossa Cultura”, afirmou.
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