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Entrevista

“Esqueçam as soluções simples”

"Conselheiro tutelar não é comissário de menores, não fica catando criancinha na favela", repete o promotor Murillo Digiácomo, em meio à acalorada discussão sobre mudanças nas eleições para os conselhos. Tem suas razões para insistir. À frente do Centro de Apoio Operacional dos Promotores da Infância e Adolescência do Ministério Público do Paraná (MP-PR), Murillo gasta boa parte de seu tempo atendendo os conselheiros. Entende que ouvir e orientar é seu trabalho. Conhece a realidade dos conselhos. E em meio à tarefa, lista as distorções que encontra, logo convertidas em artigos que publica no site do MP. Tem fama de incansável.

O debate sobre a "prova eliminatória" ou "classificatória" para conselheiro – requisito que pode ser instituído ano que vem, a depender das costuras no setor – só vem reafirmar uma de suas convicções. Não existe faculdade para quem atua em conselho. É tarefa que se aprende com formação específica, e com o apoio jurídico e administrativo de órgãos como o MP e prefeituras. Daí ter um pé atrás com a mística que se criou em torno das provas e com a tendência a exigir conselheiros cada vez mais escolarizados. "O que adianta ser formado em Harvard e se mostrar um analfabeto político", provoca.

Em meio à defesa do caráter democrático e popular das eleições para o conselho tutelar, contudo, Murillo não perde a oportunidade para apimentar o debate. Ele entende que a função dos conselhos permanece distorcida. Que muitos abrigamentos são não só desnecessários como uma ultrapassagem de sinal. "O que diz a lei?", provoxa. Mas nada de fatalismo. Com a eleição unificada para os conselhos, em 2015, Digiácomo acredita que se vai falar muito no assunto, nos próximos meses, tirando o assunto do obscurantismo em que se encontra. "Será uma oportunidade única", aposta.

Confira trechos da entrevista à Gazeta do Povo. Os conselhos se desvirtuaram?

Já estão desvirtuados. Daí o esforço de criar as escolas de conselhos. Esta semana conversei com uma conselheira, que estava em meio a um encaminhamento equivocado. Queria devolver um menino para o pai, que vive em outro município, para ver se resolvia. Pois estavam se livrando do problema e não resolvendo. Da noite para o dia não se recupera um convívio. Em poucos dias o menino estaria de volta. Não é simples. A lei prevê espaços intersetoriais para investigação e debate sobre os casos. Assim deve ser.

O que se perde com a tentativa de profissionalizar os conselheiros tutelares?

Nada, desde que essa profissionalização venha para que o conselho cumpra o seu papel e não o papel dos outros.

Muitos conselheiros tutelares acham que a exigência de prova para se candidatar vai tornar o pleito elitista. O senhor concorda?

Sou contrário à prova de caráter eliminatório. A prova, nesses termos, tira do eleitor a prerrogativa de escolher o seu conselheiro. Se for mal, mas é reconhecido pela sociedade, é meu direito votar nele. Acho que uma avaliação pode ser feita apenas para informar o eleitor sobre o nível do candidato. A eleição é um processo democrático, não um concurso público. A ideia do Estatuto da Criança e do Adolescente é que o conselheiro represente a sociedade, em sua diversidade. Também sou contra exigir nível de escolaridade. Tem município que pede conselheiro com nível superior. Além de ser fora de propósito, não garante um funcionamento melhor. O bom funcionamento depende do nível de consciência política. Alguém pode ser formado em Harvard e ser um analfabeto político.

É legal fazer prova eliminatória para uma eleição democrática?

As decisões nos tribunais superiores têm aceitado o pedido de requisitos para cargos municipais. Legalmente é admissível, só não acho que seja correto. É um equívoco e se distancia do propósito a que veio o conselho tutelar. O conselho é um órgão de cobrança do poder público. Para exercer essa tarefa é preciso ser qualificado. É uma tarefa bem específica. Nenhuma formação acadêmica ensina a ser conselheiro, nem a Pedagogia, nem o Serviço Social.

O senhor acredita que questões pragmáticas – como as dificuldades de relacionamento dos conselhos tutelares com o poder público – determinaram essa discussão?

Se for essa a motivação, é um tiro no pé. Reforço – para termos um bom conselho, precisamos oferecer formação específica para o cargo, e dar apoio jurídico aos conselheiros, tarefa que cabe aos municípios. O que não pode acontecer é conselheiro ficar sozinho dentro dos conselhos, sem suporte.

Outro argumento recorrente é de que a violência impõe novos desafios aos conselheiros, daí mudar as exigências...

É mais um equívoco. Atender vítimas de violência não é o papel do conselheiro. O que lhe cabe é assegurar que os órgãos técnicos de competência prestem um atendimento de qualidade. Não é o conselheiro que deve bater na porta da vítima e perguntar se houve ou não violência. Esse é um serviço que o município deve fazer, qualificando técnicos competentes. Quem apura crime contra a criança não é o conselho tutelar. Um dos piores estereótipos é o de que conselheiro é polícia de criança.

Então é irregular o conselho retirar uma criança de casa porque ela estava em situação de violência?

Eu acho. O conselho não tem esse papel. E o agressor é que tem de ser retirado do lar. A criança já foi vitimizada. De repente, é colocada num abrigo, no meio de pessoas que não conhece. Em matéria de infância, a gente tem de agir com rapidez, mas não com precipitação. Há protocolos. O que diz a lei a respeito de afastamento da família? Que só a autoridade judiciária pode determinar essa medida. O conselho tem de fornecer informações para o Ministério Público. Ou temos elementos técnicos para afastar o agressor ou nós não temos elementos técnico para afastar uma criança. Do contrário, estamos tratando criança como se fosse objeto. Conselho não é carrocinha de criança.

Não posso punir a criança por ser ela vítima de violência. Quem sofre a pena é a vítima? Essa é uma inversão brutal. Pense num problema em matéria de infância e pense numa solução. Pois descarte a solução mais fácil. Em matéria de infância nunca existem soluções fáceis.

O senhor entende, então, que há uma crise de competência sobre o papel dos conselhos...

Existe, e muitas vezes entre os próprios conselheiros. O conselho acaba sendo usado como se fosse um serviço social, de investigação, mas não é nada disso. O que cabe ao conselho é monitorar o sistema para se certificar de que os órgãos competentes atuem em casos de violação de direito.

Na prática, os conselhos suprem o Estado negligente. Como lidar com isso?

O conselheiro até pode se achar no direito de fazer uma abordagem. Mas sugiro lembrar que o conselho é um colegiado. Não é um, são cinco conselheiros. A atuação nunca pode ser isolada. O conselheiro por si só não tem preparo. E quando há preparação, ela versa muito mais sobre o que não fazer do que sobre o que fazer.

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