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A mesma esquerda que, em outros contextos, alega defender ferrenhamente a ciência pode recorrer, às vezes, a especulações teóricas que não perdem muito para o terraplanismo em grau de fuga do senso comum. É o que tem ocorrido, nos últimos anos, nas justificativas que alguns formadores de opinião apresentam para a queda consistente de homicídios registrada no Brasil nos dois governos que sucederam a primeira era PT - gestões dos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). A negação da realidade voltou a ocorrer nesta quarta-feira (1º), com a constatação de nova queda nesses índices.
Os assassinatos caíram 30,9% entre 2017 e 2022, de acordo com dados divulgados na quarta-feira pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O país registrou em 2022 um total de 40.824 homicídios, o menor número da série histórica do FBSP, que publica os dados desde 2007.
A tendência de queda dos homicídios a partir de 2018 –segundo ano depois que o PT deixou a presidência do país – é forte. Já entre 2007 e 2017, o crescimento dos assassinatos foi consistente.
Em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula, ocorreram 44.625 homicídios. Em 2016, último ano do governo Dilma Rousseff (PT), foram registrados 57.842 homicídios no país, 13,2 mil a mais do que nove anos antes.
Desde 2018, pelo contrário, há uma tendência à diminuição dos assassinatos, iniciada ainda na gestão Temer, quando ocorreram 51.558 homicídios no país. Em 2019, já no governo Bolsonaro, o índice abaixou para 41.730, seguido de um aumento em 2020 para 44.061 e de duas quedas subsequentes.
Ainda assim, ao elencar hipóteses para explicar os números, formadores de opinião e meios de comunicação com viés de esquerda evitam considerar uma possibilidade que, em qualquer análise honesta, seria ao menos cogitada como plausível: a de que os governos de esquerda falharam gravemente nas estratégias de combate à violência.
Na lista de teses que a esquerda tem utilizado para explicar o fenômeno, figuram teorias como “a profissionalização do crime organizado” e o “pacto de não agressão entre facções”. "A redução dos homicídios no Brasil é o termômetro de um mercado criminal mais equilibrado”, afirmou um especialista com esse viés.
No entanto, a redução ocorrida a partir de 2018 foi drástica, e é de se supor que, se essas hipóteses estivessem corretas, a transformação seria gradual, e não repentina. Além disso, até 2017, os índices de violência só cresciam, o que deveria levantar dúvida sobre por que o crime organizado teria decidido se profissionalizar somente a partir de 2018.
O promotor de Justiça Bruno Carpes, membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais e autor do livro “O Mito do Encarceramento em Massa”, diz que “teses a respeito da ‘profissionalização do crime’ ou do ‘pacto de não agressão’ não se sustentam quando se analisa amiúde a queda geral da criminalidade”. “Houve redução em crimes como roubos, latrocínios e estupros em todas as regiões do país. Basta acompanhar o noticiário para se notar que as disputas entre facções em diversas regiões do país continuam. Consequentemente, tais teses mostram-se extremamente frágeis do ponto de vista científico e empírico, sustentando-se apenas no viés de confirmação de alguns especialistas para justificarem os seus paradigmas a respeito das causas do crime”, afirma o especialista. “Causam espanto tais afirmações, especialmente quando os fatos e inúmeros estudos empíricos mostram a falência de tais argumentos, tornando-os acientíficos”, acrescenta.
O jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), diz que as hipóteses mencionadas "não são minimamente plausíveis”. “Essas hipóteses revelam um esforço retórico, quase um malabarismo, para não se admitir qualquer mérito dos governos que sucederam o PT no combate ao crime. Como o petismo colocou em prática a cartilha esquerdista de vitimização do criminoso, tratando-o em patamar superior ao da própria sociedade que dele era vítima, e os resultados foram péssimos, incluindo recordes sucessivos nos homicídios, simplesmente não aceitam admitir que a reversão dessas políticas bandidólatras produziu efeitos positivos. Daí essas invencionices de que a redução dos crimes seria uma opção dos próprios criminosos, algo completamente fora da realidade de segurança pública e somente defensável por quem não entende minimamente do assunto ou sequer faz ideia de como se estruturam as organizações em sua disputa por território. Chega a ser espantoso que teses tão estapafúrdias possam ser tratadas com seriedade em alguns segmentos”, critica.
Além das hipóteses mirabolantes, meios de comunicação com viés de esquerda buscaram formas alternativas de enquadramento da realidade para noticiar o fato. Uma delas foi dar maior destaque ao fato de que, no último trimestre de 2022, houve um aumento dos homicídios em comparação com o trimestre anterior. “Ciclo de redução da violência no Brasil perde força”, disse um veículo.
Um especialista entrevistado por um meio jornalístico aproveitou o número negativo do trimestre final de 2022 para atacar o afrouxamento das políticas de desarmamento da população: “Aquela tendência de redução nos homicídios que a gente vinha visualizando nos últimos anos, sobretudo a partir do último trimestre de 2018, foi revertida. A grande flexibilização que ocorreu nas normas federais para aquisição e manutenção de armamentos e de munição, e esse descontrole da política pública, pode estar começando a cobrar a sua fatura a partir de agora”, disse.
Um meio com viés de esquerda preferiu colocar a ênfase no número absoluto e deixar de lado as comparações com anos ou trimestres anteriores. “Brasil supera 40 mil mortes violentas em 2022”, noticiou.
Fatores importantes são ignorados como hipóteses para redução dos homicídios pela esquerda
Bruno Carpes explica que a queda nos homicídios pode se dar por diversos fatores. Um dos principais tem sido ignorado pela esquerda: a adoção de políticas públicas que buscam combater a impunidade.
“Após mais de 30 anos de ascensão do número de homicídios no Brasil – em um cenário do que se pode chamar de ‘impunidade estrutural’ –, inúmeras ações estatais, tanto de parte da União quanto dos estados, podem explicar a virada de chave na tendência de aumento”, diz. Como exemplo, o especialista cita o deslocamento de lideranças de organizações criminosas a penitenciárias federais, o aumento significativo de apreensão de drogas, o incremento do confisco de ativos das organizações criminosas, a intervenção federal no Rio de Janeiro, o aprimoramento no controle dos estabelecimentos penais e as grandes operações interinstitucionais deflagradas pelo Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC).
Além disso, Carpes destaca a “mobilização das forças policiais, que se encontravam em crescente desmotivação e sem apoio da classe política”. Ele também menciona o programa "Em Frente Brasil", lançado em 2019 pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro. O projeto começou em cinco cidades, teve resultados relevantes, com queda nos índices de violência em diversas frentes, e foi replicado em outros municípios.
“Não se descartam, por óbvio, outros fatores, mas, em primeiro plano, as novas ações estatais parecem ser a força-motriz para a redução”, afirma Carpes.
Para Rebelo, foram determinantes para a queda nos homicídios as “políticas menos coniventes com a criminalidade sistêmica, focando no isolamento dos líderes das grandes organizações e no trabalho de sufocamento de seu abastecimento”, com grandes apreensões de armas e drogas. “Sem o comando direto de seus líderes e com menos poderio bélico e econômico, a atuação dessas organizações foi reduzida”, destaca.
Os especialistas são mais cautelosos, no entanto, com a teoria apregoada por parte da direita de que a facilitação no acesso ao armamento legal teria sido o motivo mais determinante para a queda nos índices de homicídio. Para Carpes, isso é uma discussão “muito mais ligada com o direito de defesa” e que tem pouco a ver com a segurança pública.
Por um lado, afirma o promotor, pesquisas já demonstraram “inúmeras vezes” que “o maior acesso às armas legais não demonstra aumento no número de crimes violentos”. “O aumento de acesso às armas legais não traz efeitos negativos à macrocriminalidade”, assegura o especialista, destacando que há inclusive estudos norte-americanos que demonstram o contrário: o porte de arma legal pode inibir crimes violentos por criminosos habituais. Por outro lado, segundo ele, seria apressada a conclusão de que o aumento do número de armas legais favoreça consideravelmente o declínio da macrocriminalidade.
Rebelo concorda. “A associação entre acesso às armas e segurança pública precisa ser feita com bastante cuidado, para não se cair na armadilha retórica de que permitir esse acesso seja política de segurança pública. Não é. Trata-se da garantia da segurança pessoal do indivíduo, justamente quando o aparato de segurança pública já falhou e ele só tem a si mesmo para se defender”, destaca.
O mais importante na discussão do efeito das armas legais para a segurança pública, na visão dele, é “a total desconstrução da teoria esquerdista de que permitir o acesso legal às armas sempre implica aumento de homicídios”. “Tivemos um movimento consolidado em sentido oposto nos últimos anos, com recordes na venda de armas e nas quedas dos crimes letais. Disso resulta o desespero desarmamentista para buscar explicações mirabolantes contra a realidade”, conclui Rebelo.