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Iniciativas para blindar autoridades públicas contra críticas, que já eram tendência forte no Judiciário, têm se intensificado e se espalhado por diversas instâncias do Estado brasileiro. No Executivo e no Congresso, projetos e ações buscam proteger autoridades com restrições à liberdade de expressão e perseguição a jornalistas, influenciadores e cidadãos em geral, sob o surrado pretexto da necessidade de combater "fake news".
O comportamento do governo Lula no contexto recente das enchentes no Rio Grande do Sul é emblemático dessa tendência. No começo de maio, por exemplo, o então chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), Paulo Pimenta, acionou a Polícia Federal (PF) e a Advocacia-Geral da União (AGU) para identificar e punir disseminadores de supostas fake news sobre a tragédia.
O governo tem feito ataques diretos a veículos de imprensa, como no caso em que a Folha de S.Paulo foi acusada de desinformação ao mostrar que dois projetos contra enchentes que haviam sido pedidos em julho do ano passado pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), não foram incluídos no novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). "Não é verdade a matéria da Folha de S. Paulo que diz que o Governo Lula deixou de fora do PAC projetos contra inundação, solicitados pelo governo do estado do RS. Informações incompletas e imprecisas dão a entender que o governo federal negligenciou propostas do RS, o que não corresponde à verdade", disse o governo em mensagem disparada nas redes.
O Executivo também tem imitado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na tentativa de fazer parcerias com as Big Techs para controlar a informação publicada sobre a tragédia do RS nas redes sociais. Recentemente, a Advocacia-Geral da União (AGU) firmou um acordo com essas empresas, na presença também de integrantes da Secom (Secretaria de Comunicação), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal. A intenção é criar um canal direto com as plataformas para facilitar o controle da informação.
No começo do terceiro mandato de Lula, a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia – o chamado "Ministério da Verdade" de Lula –, um braço da AGU alegadamente destinado a coibir desinformação, deu o tom de como o governo Lula poderia usar o aparato do Estado para censurar críticas.
Levantamento recente feito pelo UOL confirma em números esse presságio: desde o início do mandato de Lula, o Ministério da Justiça solicitou 91 investigações por crimes contra a honra, muitos deles envolvendo o presidente e a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja. O número supera todas as solicitações feitas durante a gestão Bolsonaro. A maioria dos pedidos ocorreu na gestão de Ricardo Lewandowski como ministro da Justiça, com uma média de 6 pedidos por mês, ainda de acordo com o UOL.
Entre as investigações se encontra, por exemplo, um inquérito contra o deputado Gilvan da Federal (PL-ES) para saber se ele ofendeu a honra do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quando se referiu ao chefe do Executivo como “ex-presidiário”, “ladrão” e “corrupto”.
Para Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, as autoridades públicas deveriam ter maior tolerância a críticas do que o cidadão comum, e não o contrário. "A liberdade de expressão não foi concebida para proteger as autoridades públicas, os políticos, aqueles que detêm poder e tomam decisões por nós. Antes, ela foi concebida para nos dar o direito de criticá-los, mesmo que a crítica seja exagerada ou errada."
Na visão de Moreira, a reação indignada da população no caso da tragédia no RS não deveria ser preocupação do governo. "Nessa questão das enchentes no Rio Grande do Sul, é natural que as pessoas estivessem ressentidas e até revoltadas com a atuação do Estado. E isso foi visto como 'fake news'. Ora, só esse episódio já demonstra que devemos ter todos os cuidados possíveis antes de regulamentarmos as redes sociais ou estabelecermos algum marco de punição para esse combate às 'fake news'."
Congresso e Judiciário também demonstram desejo de blindar autoridades contra críticos
Com a escalada de iniciativas para blindar autoridades de críticas, o governo Lula imita o modus operandi recente do Judiciário brasileiro – amplamente relatado pela Gazeta do Povo nos últimos anos – de limitar a liberdade de expressão para se proteger de opiniões desfavoráveis. Tanto os inquéritos que investigam há mais de cinco anos supostos ataques à Corte quanto alguns episódios menores, que já entraram para o folclore do comportamento abusivo do Judiciário – como o caso do aeroporto de Roma –, normalizaram a blindagem dos membros do STF em relação a críticas.
Na semana passada, o ministro Alexandre de Moraes publicou uma nota acusando o portal UOL de publicar uma "fake news". De acordo com o jornal, membros da Corte teriam avaliado, sob garantia do sigilo da fonte, que a estratégia escolhida pelos advogados para contestar a inelegibilidade de Bolsonaro teria “enterrado a possibilidade” de retorno do ex-presidente em 2026. O UOL defendeu a reportagem, alegando que obteve a informação de membros do TSE sob sigilo.
A tendência de se preocupar mais com a própria imagem do que com o serviço prestado à população se disseminou também pelo Congresso, embora ainda em menor escala.
Tramita na Câmara o Projeto de Lei 3734/23, que propõe a inclusão no Código Penal do crime de "causar constrangimento a autoridade pública". A pena varia de 2 a 6 anos de reclusão, podendo dobrar se o ato ocorrer pelas redes sociais ou em grupos de WhatsApp. O autor do projeto, deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), defende que a criminalização desencorajaria ataques às autoridades.
A tentativa de derrubada, dias atrás, do chamado "veto da liberdade", que impedia a criminalização do que se chama de "fake news", é mais uma evidência de que alguns membros do Legislativo estão empenhados em coibir críticas às suas próprias ações e às de seus colegas dos outros Poderes. Outro sinal disso foi o esforço de parcela significativa dos parlamentares para tentar aprovar, no ano passado, o PL 2630/2020 – o "PL da Censura" ou "PL das Fake News".
A proposta para o novo Código Civil, como já mostrou a Gazeta do Povo, traz embutida as ideias desse projeto. Recentemente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respondeu às críticas direcionadas ao projeto da forma já previsível: acusou-as de "fake news".