Raia foi reduzida de 10 para 7 metros, mas o gado que resta está muito magro para a competição| Foto: Alexandre Mazzo
Prova de vaquejada em Cabrobó no sertão do estado de Pernambuco
Gado pastando na ilha de Assunção - rio São Francisco em Cabrobó no sertão do estado de Pernambuco
Joseílson Ramos dos Santos e o sobrinho Everson mostram a vaca na ilha na ilha de Assunção-PE
Joseílson perdeu 11 bois e agora tenta salvar Carinhosa
Gado viaja centenas de quilômetros até a Ilha de Assunção (PE), último recurso de salvação
Travessia de gado sobre o rio São Francisco para engorda na ilha de Assunção – Cabrobó-PE
Joaquim, João, Pedro e Neuza, uma família inteira dependente
Família que depende de programas do governo federal e estadual para se manterem - Bombocado-PE
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No final do século 18, o gado passou a ser criado solto nas matas dos sertões do Brasil, dando origem à figura do peão encarregado de recolher o rebanho dos coronéis. Desse ofício derivou a vaquejada, atividade recreativa-competitiva com um século de tradição. Hoje o Nordeste tem 110 parques de vaquejada, fora as raias em propriedades rurais no sertão. É justamente nesses pontos mais remotos que a tradição está por um fio devido ao flagelo da seca que dura três anos. Está faltando boi para a disputa, mortos pela sede e pela fome.

FOTOS: Veja slideshow da seca no Nordeste

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Ronaldo Ramos Reis, o Ronaldo Galo, de 59 anos, organiza vaquejadas há 30 anos em Coração de Jesus, cidade de 26 mil habitantes no Norte de Minas Gerais. Seus últimos sete circuitos tiveram 15 eventos por ano, e a final de 2012 reuniu 40 mil pessoas na vizinha São João da Lagoa. O oitavo circuito foi cancelado. Até estava dando para driblar as exigências dos Bombeiros e as pressões dos protetores dos animais, mas a chuva deixou de comparecer. "A seca atinge todos os segmentos da área rural, e a vaquejada é rural", explica Ronaldo.

O sertanejo ainda buscou meios para manter a tradição. Reduziu de 10 para 7 metros a raia até o ponto em que o gado tem de ser tombado pelo rabo, extensão proporcional ao tamanho do boi, minguado em tamanho e quantidade. Mas os rebanhos estão cada vez mais sendo vendidos ou abatidos antes do tempo por causa da estiagem. As prefeituras do Norte de Minas, que sustentam a vaquejada, veem seus cofres esvaziarem na mesma proporção dos reservatórios de água. "Por insistência e paixão de alguns que têm mais condições, vão acontecer cinco vaquejadas neste ano, se acontecerem".

Estratégia onerosa

Em Cabrobó, cidade de 30 mil habitantes na região mais árida de Pernambuco, a 600 km da capital Recife, sedia 12 vaquejadas por ano em pequenas e médias propriedades rurais. Por causa da falta de gado, uma delas deixou de ser realizada ano passado e outra foi suspensa neste ano. Fabrício Barros dos Santos, de 36 anos, que em março organizou sua sétima festa, diz que em 2012 não encontrou boi forte o suficiente para a vaquejada. Neste ano ele teve de recorrer a uma estratégia bastante onerosa para manter a tradição herdada do bisavô.

Antes da seca, pecuaristas da região emprestavam parte do rebanho para a organização do evento. Desta vez, Fabrício teve de recorrer ao rebanho da Ilha de Assunção, uma reserva indígena dentro do Rio São Francisco, em Cabrobó. Os índios trucás estão alugando as terras com pasto para pecuaristas de muitas cidades do Polígono da Seca. A ilha de 3,5 mil habitantes e 5.700 hectares se tornou a UTI do gado que está morrendo de fome e de sede. A vaquejada foi realizada dia 13 de março, mas a experiência não foi muito promissora.

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Fabrício e o sócio Paulo Reginaldo alugaram 50 cabeças a R$ 80 cada uma. Entre aluguel de bois, custo de transporte e de pessoal, mais a premiação aos vencedores, a organização gastou R$ 12,8 mil dos R$ 15 mil arrecadados. Um resultado pífio para dois meses de trabalho. Além de desmotivar outro evento, o perfil do gado também compromete a qualidade da vaquejada. O boi da caatinga é mais arisco, o que tornava a prova mais difícil. "Se a gente continuar, só mesmo pra reunir os amigos e pra manter a tradição. Mas é difícil", diz Fabrício.

Ilha do Rio São Francisco vira a UTI do gado

A Ilha de Assunção, uma das maiores do Rio São Francisco, tinha até recentemente o cultivo de arroz, feijão, cebola, goiaba, coco, maracujá e banana como principal atividade produtiva. Mas a seca que há três anos castiga o semiárido brasileiro mudou o perfil da ilha dos índios trucás, de 3,5 mil habitantes. Essa rara mancha verde no Polígono da Seca, com seus 5.700 hectares cercados por água, tornou-se a UTI do gado que está morrendo de fome e de sede nos arredores de Cabrobó (PE), um dos núcleos de desertificação no Brasil.

Pela ponte estreita que leva à ilha passam os caminhões com boiadas esquálidas vindas de muitas cidades do sertão pernambucano. Os índios passaram a alugar suas terras a pecuaristas desesperados com as perdas de rezes, cujas carcaças se multiplicam em meio à caatinga. Um deles é Joseílson Ramos dos Santos, 45 anos. Dono de 16 hectares em Parnamirim (PE), perdeu 11 das 30 cabeças de gado por inanição.

Joseílson vendeu dois bois pela metade do preço e levou os 17 sobreviventes para a UTI do Rio São Francisco. Alugou dois hectares de pasto por R$ 2 mil e pagou R$ 400 pelo transporte até a ilha, distante 75 quilômetros. Ao desembarcar o gado, mês passado, notou que Carinhosa, a mais velha do rebanho, estava desmantelada na carroceria. A fome cobrava as últimas forças do xodó da família.

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Joseílson recorreu então a uma engenhoca muito recorrente no sertão para animais à beira da morte. O equipamento é basicamente o mesmo em todo lugar, feito com estacas de madeira, cordas e saco de nylon. O propósito é ajudar o gado a se manter de pé, pois se ficar prostrado morre logo.

Joseílson fincou as estacas, aprumou as cordas e pediu ajuda para suspender Carinhosa. Um morador da ilha sugeriu inovações. Eles cavaram sob uma árvore um buraco profundo e largo o suficiente para caber as pernas do animal e instalaram as estacas ao redor, de modo a mantê-la suspensa por cordas com os membros inferiores metidos na cavidade. O sobrinho, Éverson, de 11 anos, ajuda a dar água e comida na boca de Carinhosa. Ela passou a responder bem aos cuidados.

A família de Joseílson teve de dar uma cota extra de sacrifício para tentar salvar o parco rebanho, único patrimônio depois de a seca fustigar o plantio de milho, feijão e algodão. Ele foi com os filhos de 18 e 19 anos para cuidar do gado na ilha, enquanto a mulher ficou em Parnamirim com o menino de 16 e a menina de 14 anos. A família teve de se dividir na esperança de saldar as dívidas, cujo valor a vergonha impede Joseílson de revelar.

SobrevivênciaFustigado pela estiagem, sertanejo se vê entre a doença e a dependência

Salgueiro (PE), a 520 quilômetros de Recife, é o retrato da dependência governamental em decorrência da seca prolongada. O município de 57 mil habitantes, cuja economia está centrada na agricultura, tem três mil produtores rurais mantidos por programas oficiais de transferência de renda. São 1.478 agricultores recebendo o Garantia Safra, no valor de R$ 760 anuais divididos em parcelas, e outros 1.500 auxiliados pelo Bolsa Estiagem, de R$ 80 por mês.

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O Bolsa Estiagem começou a ser pago pelo governo federal em junho do ano passado e atendeu 880,6 mil pessoas, em 1.316 municípios, totalizando R$ 569 milhões. O pagamento é feito em parcelas de R$ 80,00 a agricultores de baixa renda que vivem em municípios atingidos pela seca. Já o Garantia Safra repassou R$ 953,5 milhões a 769 mil agricultores de 1.015 municípios desde 2011.

O benefício destina-se a agricultores que contraíram empréstimo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e tiveram prejuízo com a estiagem. O valor chega a R$ 1,2 mil, em parcelas que variam de R$ 135,00 a R$ 140,00 mensais. O governo de Pernambuco socorre ainda com o Programa Chapéu de Palha. Seis mil agricultores são beneficiados com um valor mínimo de R$ 100, válido para o período da entressafra que vai de abril a agosto.

A família de João José da Costa, de 66 anos, é uma das beneficiadas com os programas oficiais. Ele vive com a mulher, duas filhas, dois genros e três netos em dois terrenos, de 66 e 39 hectares, onde criam gado e cultivam a terra. João tinha 16 cabeças de gado. Vendeu uma e outras sete morreram. As demais ninguém quis, estavam muito magras. Uma tímida chuvinha em janeiro animou, e ele plantou milho e feijão. Perdeu tudo. Teve de se contentar com o Seguro Safra e Chapéu de Palha. Ele e a mulher são aposentados rurais.

A filha, Neuza, recebe o Bolsa Família. O marido dela, Pedro Expedito da Cruz, de 44 anos, foi diagnosticado com depressão e não pode trabalhar. Vítima da seca, passou a manifestar problemas neurológicos decorrentes das sucessivas perdas agrícolas causadas pela estiagem. Ele, a mulher e os três filhos passaram a ficar dependentes do Seguro Safra e do Chapéu de Palha.

O outro genro de João, Joaquim Josias Gomes, não teve igual sorte. Ele fez o cadastro no Garantia Safra, pagou a taxa de R$ 9,50 há dois meses, mas ainda não teve resposta. Antes, havia feito inscrição no Bolsa Família, mas não pôde receber o benefício porque tinha uma moto em seu nome. A moto, no entanto, não é um luxo. É o único meio de locomoção da família até a cidade, distante 14 quilômetros, a maior parte em estradas de terra.

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SocorroFundo constitucional garante R$ 2,7 bilhões de ajuda ao semiárido

Por meio do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), o governo federal oferta crédito com juros baixos para agricultores familiares, produtores rurais e pequenas e médias empresas das regiões afetadas pela seca. Desde maio de 2012, foram contratadas 300 mil operações pelas linhas emergenciais de crédito, no valor de R$ 2,4 bilhões. O apoio chegou a produtores de mais de 1,3 mil municípios do semiárido. O Tesouro Nacional fará, ainda, um aporte adicional de R$ 350 milhões de recursos do FNE para as linhas de crédito emergenciais, elevando os valores para R$ 2,75 milhões. A medida vai assegurar a continuidade da assistência de crédito com juros baixos para produtores rurais afetados pela seca.Órfãos da seca