A adolescente Amábile Vitória dos Santos, 13 anos, está no caminho para realizar o sonho de ser jornalista. A redação “Meu vizinho nipônico”, escrita pela aluna do 8º ano do Colégio Estadual Cecília Meirelles, de Ubiratã, Noroeste do Paraná, é uma das cinco vencedoras na categoria memória literária da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, da Fundação Itaú em parceria com o Ministério da Educação. O concurso teve a inscrição de 50 mil textos de estudantes de escolas públicas de todo o país e escolheu os cinco melhores em quatro categorias: memória literária, artigo de opinião, crônica e poema.
“Minha filha é muito tímida, fala pouco. Mas quando escreve, ela consegue expressar tudo o que sente”, orgulha-se a mãe, a dona de casa Maria José de Souza Santos, 47 anos, que tem na geladeira um poeminha escrito pela menina: “Não esperem viver grandes coisas. Isso será para poucos. Mas vivam grandes momentos. Isso será para todos”.
“Costumo dizer que a Amábile é uma ostrinha: é bem fechada, mas guarda muitas pérolas”, elogia a professora de Português Aparecida Torres dos Santos Barroso, que coordenou a seleção dos textos na escola.
De premiação, a estudante ganhou R$ 350 para comprar livros, um notebook e um tablet. A professora e a escola também foram agraciados. Aparecida também recebeu um notebook e um tablet, além de R$ 150 para livros.
Já ao Colégio Cecília Meirelles o texto rendeu dez computadores, uma impressora, um projetor multimídia, um telão de projeção e livros para a biblioteca. “O prêmio mesmo é a motivação que os alunos estão tendo para participar da próxima edição da Olimpíada. Até então ninguém acreditava que a gente poderia vencer, mas conseguimos”, enfatiza a professora Aparecida.
Reportagem
O texto com o qual Amábile ganhou o concurso é exatamente o que ela pretende exercer no futuro: uma reportagem. Pela regra da Olimpíada, na categoria em que a paranaense venceu os alunos da 7ª à 8ª série devem entrevistar e escrever em primeira pessoa as memórias de alguém representativo da comunidade em que vivem. No caso do grupo que Amábile participou, a escolha foi pela professora aposentada Maria dos Santos, 62 anos, que lecionava na área rural de Ubiratã.
Na narrativa, a estudante descreve as lembranças de infância de dona Maria, cuja família vizinha, de origem japonesa, os Shimohiro, era dona do único veículo da vila, um caminhão verde que atendia os moradores em tudo. Servia de ambulância para levar os doentes ao médico, de funerária para encaminhar os defuntos ao cemitério e de táxi para buscar a parteira quando nascia um bebê. “Nunca tinha entrevistado ninguém. Achei muito legal ouvir a história da vida dela e depois escrever sobre isso”, afirma Amábile.
Para organizar a disputa, a professora Aparecida separou os 140 alunos da 7ª e 8ª série em grupos de cinco. Cada grupo entrevistava uma pessoa e escrevia uma redação coletiva. O texto da equipe de Amábile foi eleito pelos próprios estudantes o melhor da escola. A partir de então, cada uma das cinco meninas escreveu a sua própria versão da história, com a de Amábile sendo apontada como a mais bem escrita pelos professores.
Na sequência, a redação venceu a disputa entre as escolas de Ubiratã e do Paraná, ficando entre os cinco melhores dos 38 finalistas de todo o Brasil. “Sempre digo para os alunos que o texto tem que ter sabor. E o da Amábile é bem gostoso de se ler”, enfatiza Aparecida.
Com o dinheiro do prêmio a menina deu início a uma pequena biblioteca. “O engraçado é que antes eu só lia os livros da escola. Agora estou lendo também em casa”, admite. Entre os nove títulos que adquiriu está A hora da estrela, o último romance de Clarice Lispector. “Eu li na contracapa ‘uma escritora decidida a desvendar os mistérios da alma’. Achei isso bonito e decidi comprar”, explicou, antes de ser informada pelo repórter que Clarice Lispector, que também chegou a atuar como jornalista, é uma das maiores escritoras brasileiras. “Então acho que escolhi certo”, comentou a tímida Amábile.
Meu vizinho nipônico
Domingo. Tarde de outono. Sento-me no piso fresco da varanda. Dia de brincar de avó. Um pouco de meninice me faz bem. Observo com ternura a minha netinha. Vejo-me refletida em seus singelos gestos e atitudes. Seu doce modo de saborear a vida me deixa enternecida. O som suave da canção, na voz do padre Zezinho (Maria de minha infância), vinda de um radinho lá da área de serviço, conduz-me ao passado.
Reencontro minha infância. Imagens confusas aos poucos vão se tornando reais. Na carroceria de um caminhão animais e pessoas, ocupando o mesmo espaço, ali ancoramos às margens do Rio Carajá. Plantamos nossos sonhos em forma de sementes no abençoado solo roxo do oeste paranaense. Adotei Ubiratã “lugar de gente feliz” como minha terra natal.
Aromáticas lembranças das primeiras plantações de hortelã. O tapete verde cheiroso, com o tempo, foi cedendo espaço ao plantio de algodão, trigo, soja...
Nossas brincadeiras preferidas: a fazendinha com animais fabricados de legumes, alimentar as formigas com farelos de pão, o banho no Córrego Esperança. Quanta algazarra!
Doces memórias. A ceia de Natal depois da Missa do Galo, na cidade. Meu avó e seu “cumpade Mané”, por muitos anos, convidavam toda a nossa família e vizinhos para participarem dessa romaria. Locavam o possante veículo dos nossos vizinhos orientais. Os donos de uma relíquia: o caminhão. Único.
Cabine verde. Um luxo. Desempenhava funções essenciais no povoado. Na colheita, puxava os produtos do campo para a cidade. Nascimento de um bebê, alguém se encarregava de chamar o japonês com o caminhão para buscar a parteira. Meu irmão bebeu querosene (susto), meu tio quebrou a perna (o caminhão nossa ambulância, o nosso pronto-socorro). Casamento na comunidade, que festança! Lá estava ele o pomposo caminhão “do japonês”, um carrossel em lindo estilo. Alguém falecia no povoado (que triste). “Funerária?” o caminhão do japonês conduzia o corpo à última morada. Nas eleições: o verdão nos aguardando.
Noite de Natal. Na carroceria, bancos de madeira acomodavam crianças e senhoras, os homens iam em pé acompanhando os movimentos do veículo. Cai não cai. Na cabine, às vezes, ia a senhora grávida ou de bebê de colo. O bom mesmo era sentir a brisa da noite beijar nossas faces, na carroceria. Adrenalina pura. Os sobressaltos provocados pelas crateras da estrada de chão eram as turbulências do nosso airbus.
A missa tinha início à meia-noite em ponto. Durava uma hora. Parecia uma eternidade. Eu amava os cânticos natalinos na voz do coral acompanhado pela freira em seu piano provençal. De repente “Noite Feliz”. Ufa! Estava terminando. Quase a hora da ceia.
Enfim a ceia. Lá na venda da esquina de fronte a matriz, acomodados em umas poltronas de vime saboreávamos um picolé “cilíndrico” de leite, nas cores lilás, rosa ou branca. Sabor: felicidade. Recheio: sonhos. Os olhos brilhantes das crianças se deliciando com aquela abençoada ceia deixavam o meu avô e seu cumpade Mané orgulhosos e a sensação de dever cumprido. Na carroceria do possante, de volta aos nossos lares, o sacolejar ritmado me embalava. Eu adormecia.
O almoço natalino, as guloseimas, a sodinha com furinho na tampa, resfriada na água fresquinha da mina, não ofuscava as lembranças da ceia da noite anterior.
Eu, sempre arteira e curiosa fazia questão de espiar pela janela do quarto da minha avó, de longe, só um pouquinho. Ele estava na garagem. Agora descansando. Verde e imponente, o meu vizinho.
O papaguear das crianças me traz à tona e num sobressalto volto à realidade. Ufa... Inebriada em meus pensamentos não percebo o tempo passar, o sol já descambava no horizonte. O domingo se findava. Com seu olhar brejeiro, seu sorriso maroto aquela garotinha de 7 anos, minha neta, tenta ler (e lê) meus pensamentos: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. É, Fernando Pessoa, nisso somos bem parecidos. Nossa vida é uma constante viagem na busca pela felicidade. Mesmo que o meio de locomoção seja “na carroceria do caminhão... do japonês”.
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