Dez anos após a implantação da política de cotas (raciais e sociais), cerca de 14,6 mil estudantes foram beneficiados pelo sistema na Universidade Federal do Paraná (UFPR). É o equivalente a pouco menos de 30% dos 48,6 mil estudantes que adentraram a universidade, no mesmo período. Mas, o número guarda desigualdades. Enquanto os cotistas de escola pública representaram uma média de 23% dos aprovados no vestibular, os “pretos e pardos” – conforme nomenclatura do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – cotistas representam apenas 7% do total. A porcentagem é bem inferior tanto aos 20% a que esta parcela da população tinha direito até 2012, quanto aos 16% que passaram a valer após aprovação da Lei de Cotas nacional.
Os cerca de 3,4 mil cotistas raciais que ingressaram entre 2005 e 2014 representam quase a metade dos 7,8 mil estudantes negros aprovados no vestibular, no período. A etnia é informada pelo próprio candidato, em questionário socioeconômico preenchido no vestibular.
A diferença entre o número de cotistas raciais e de novos alunos negros ocorre porque muitos estudantes não optam pelo sistema de cotas, ou optam pelas cotas sociais. Na prática, a UFPR teve uma média de 783 novos alunos negros por ano ao longo dos primeiros dez anos de políticas afirmativas. O número é mais do que o dobro do último ano antes da aprovação do sistema de cotas. Em 2004, a universidade teve 317 calouros autodeclarados pretos e pardos.
O número de cotistas aprovados é estimado com base nas porcentagens verificadas em estudo da própria universidade, feito por uma comissão que fez o levantamento por determinação constante no Plano de Metas de Inclusão Racial e Social. Quando aprovado, em 2004, o plano previu um balanço ao final de dez anos, com a intenção de que o sistema de cotas fosse revisto. Neste meio tempo, a universidade deixou de aplicar seu próprio programa de cotas, e adequou-se à Lei de Cotas, que restringe a reserva de vagas a estudantes de escola pública, subdividindo-os em pretos e pardos e candidatos cuja renda familiar é inferior a um salário mínimo e meio (leia mais no box ao lado).
Na opinião do cientista político da UFPR Emerson Cervi, o aumento de negros aprovados no vestibular pós-cotas indica que a escolaridade da família, mais do que a condição de raça ou de classe, influencia na hora da escolha e aprovação em uma escola pública. “Só que estes alunos muitas vezes são os primeiros de suas famílias a entrarem na universidade, então as cotas são uma política para a próxima geração, elas vão ter um impacto quando os filhos destes estudantes chegarem à universidade”, explica. As cotas são necessárias, defende, justamente porque os alunos não estão em pé de igualdade, e a função das políticas afirmativas é de dar espaço na universidade àqueles grupos que não estariam lá de outra forma.
É o que demonstra o índice de aprovação, que aponta o número de disciplinas em que o aluno se matriculou e quantas ele concluiu. Enquanto entre os cotistas sociais e os alunos das vagas gerais a taxa de aprovação foi de 77,9%, no último decênio, entre os cotistas raciais foi de 65,8%. O número também pode ser indício de uma maior evasão escolar entre estes alunos. Como o aluno evadido matricula-se nas disciplinas, mas não as conclui, isto contribui para derrubar a taxa.
Além do impacto numérico, as políticas afirmativas mudaram o perfil do aluno que ingressou na universidade. Uma pesquisa do cientista político Emerson Cervi, a ser publicada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta que foram as mulheres negras as maiores beneficiadas pelas ações afirmativas, uma vez que seu acesso teve maior crescimento ao longo do decênio de cotas, em relação às ingressantes do período anterior.
A mulher negra que ingressou pelo sistema de cotas segue um padrão: é estudante de escola pública, de família de baixa renda e os pais têm baixa escolaridade. Até 2004, as mulheres pretas e pardas aprovadas na UFPR eram de famílias de classe média e com alta escolaridade, oriundas de colégios particulares e tinham desempenho no vestibular superior ao das pessoas brancas cujos pais não tinham formação superior.
É o caso de Ana Karolina Barbosa de Oliveira, caloura de Engenharia Mecânica, e de Izabelle Schermak das Neves, atualmente no terceiro ano de Medicina, na UFPR. Ambas vêm de uma trajetória de escolas públicas de ponta a ponta.De uma “segunda geração” de cotistas, nenhuma relata ter sofrido agressões racistas nos bancos da universidade. Mas ambas sentem que causam estranheza pela cor. “As pessoas não estão acostumadas”.
Com pai funcionário de nível médio da Copel e mãe pedagoga, Izabelle veio de uma família “politizada”. “O assunto sobre política sempre foi normal, desde criança minha mãe falava sobre cotas raciais”. Foi um incentivo para ingressar na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no ensino médio, e na Medicina “para trabalhar com saúde da família”. Hoje ela cogita escolher outra especialidade médica, “mas nada impede de ser um trabalho mais social”.
Já Ana Karolina é o retrato do estudante cotista definido em artigos acadêmicos. Moradora do Tatuquara, no extremo Sul de Curitiba, cursou lá o fundamental e fez técnico em eletromecânica, no médio. Saiu da escola para trabalhar, e só mais tarde entrou na faculdade (em um curso noturno, para conciliar com o trabalho). É da primeira geração de universitários da família. Motorista, o pai cursou até o terceiro ano do ensino médio; a mãe, babá, só fez até a oitava série. Ana tinha cinco anos quando a família veio de Maringá, tentar a vida em Curitiba.