Recentemente, pacientes terminais de Covid-19 de Manaus receberam altas dosagens de cloroquina: 6.000 mg em 5 dias, quando a bula estabelece que no máximo são 1.500 mg em três dias. A pesquisa foi conduzida por um pesquisador com 20 anos de experiência, vinculado a duas instituições de renome, a Fundação Oswaldo Cruz e a Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, o médico infectologista Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda.
O estudo foi parcialmente interrompido depois que 11 pacientes faleceram, e a equipe envolvida está sendo investigada pelo Ministério Público Federal e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. O médico foi convocado a participar de uma audiência e a entregar uma série de dados e documentos a respeito do estudo. Nas redes sociais, ele foi acusado, sem provas, de usar altas doses de cloroquina em pacientes terminais, que não teriam chance de se recuperar, para desacreditar Jair Bolsonaro, entusiasta do medicamento para o tratamento de Covid-19.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Lacerda explicou que o objetivo do estudo era confirmar a eficiência do uso de uma dosagem parecida com a utilizada pelos pesquisadores chineses (que foi bem menor que a usada pelo estudo brasileiro - os chineses usaram hidroxicloroquina e não cloroquina). “Nós tínhamos 81 pessoas, dessas 11 morreram na nossa primeira análise”, afirmou o pesquisador. “A interpretação das pessoas é que nós estamos dizendo que elas morreram porque usaram cloroquina, quando na verdade as pessoas que vão para a UTI com Covid elas estão gravíssimas, elas morrem mesmo”.
Enquanto não terminam as investigações, fica a pergunta: até onde podem ir as pesquisas com seres humanos?
Um pouco de história
Em 1796, o médico inglês Edward Jenner extraiu pus das feridas de uma ordenhadora de vacas chamada Sarah Nelmes, que estava infectada de varíola bovina, semelhante à varíola que atinge humanos. O material foi injetado em um garoto de oito anos de idade, chamado James Phipps. O objetivo era testar uma hipótese, a de que uma pequena dose da infecção seria capaz de imunizar a pessoa para ocorrências de varíola. Jenner desconfiava que as pessoas que tinham contato rotineiro com vacas eram imunes à doença.
O menino desenvolveu sintomas leves da varíola bovina. Para comprovar que ele estava imune, o médico aplicou uma nova injeção, desta vez do pus de uma pessoa contaminada com a varíola que atinge os humanos. James Phipps não ficou doente. Jenner replicou o teste com outras pessoas. Em 1798, anunciou sua descoberta. E assim, graças a testes realizados diretamente em seres humanos, surgiu a primeira vacina.
O método aplicado por Jenner era comum à época. Utilizar seres humanos como cobaias em nome da ciência era uma prática aceita, e não exclusiva dos campos de concentração nazistas. Entre 1932 e 1972, por exemplo, médicos do Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos realizaram pesquisas com negros portadores de sífilis de Tuskegee, no Alabama.
Ao longo dessas quatro décadas, 400 doentes foram monitorados, sem ser informados de que tinham a doença, nem receber tratamento adequado, mesmo quando a penicilina se provou eficaz. Ao longo do experimento, 25 das pessoas analisadas morreram em decorrência da sífilis, 40 esposas foram contaminadas e 19 crianças nasceram com a doença, tudo diante dos olhos dos pesquisadores.
Quando o caso veio à tona, denunciado por um dos médicos que atuaram na pesquisa, os Estados Unidos passaram a estabelecer uma série de normas para a pesquisa científica envolvendo seres humanos. Outros países também adotaram regras e códigos de conduta – o Brasil entre eles, começando pela antiga resolução nº 1, de 13 de junho de 1988, do Conselho Nacional de Saúde.
“Toda a organização do sistema de revisão ética de pesquisas envolvendo seres humanos visa o respeito à dignidade de todos os participantes da pesquisa. Não se admite mais, nos dias atuais, colocar pessoas em risco”, afirma Karla Amorim, professora de bioética do curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ex-coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da instituição. “Todo o sistema de ética, nacional e internacional, foi desenvolvido nas últimas décadas. Antes muitos dos estudos eram conduzidos sem o consentimento dos participantes e causavam dor desnecessária”.
Direito à transparência
O médico Jorge Venâncio, coordenador do Conep desde 2013, reitera que a pesquisa de Manaus está sendo investigada e explica que as pesquisas científicas envolvendo seres humanos são fiscalizadas por dois órgãos diferentes. “O Conep é focado nos cuidados com as pessoas pesquisadas. Sabemos que muitos pacientes estão perto do desespero quando são convidados a participar de um estudo. São pacientes de câncer, por exemplo. Então o conselho monitora os estudos para garantir que os direitos dessas pessoas sejam respeitados”.
Esse sistema de monitoramento está ligado a mais de 850 comitês de ética instalados em universidades, hospitais e secretarias de saúde. “Praticamente toda instituição que faz pesquisa tem seus próprios comitês de ética”, diz o médico. Em geral, estudos com cosméticos, por exemplo, são fiscalizados por esses conselhos locais.
“Cerca de 2% das pesquisas sobem para o conselho nacional, principalmente estudos com medicamentos”, afirma Jorge Venâncio. “O restante é monitorado pelos comitês regionais, que estão mais próximos dos centros de pesquisa”. Por sua vez, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) zela pelos aspectos técnicos da pesquisa. “São trabalhos complementares. As duas instituições mantêm um diálogo muito produtivo”, diz o coordenador do Conep.
A resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, é que estabelece as regras para a realização de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Exige, por exemplo, “respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida”.
Como afirma a professora Karla Amorim, “os participantes das pesquisas precisam compreender o estudo de que vão participar. É o que chamamos de consentimento livre e esclarecido. O pesquisador precisa explicar o estudo com linguagem clara, ou então o consentimento não será livre e esclarecido. Será apenas um papel assinado para fornecer salvaguardas jurídicas”.
O Brasil não permite que os participantes de pesquisa sejam remunerados – uma prática comum na América do Norte e no Reino Unido, a ponto de recentemente um laboratório inglês, o HVivo, ter oferecido o equivalente a R$ 20 mil para cada voluntário disposto a ser infectado pelo Covid-19, a fim de colaborar para o desenvolvimento de uma vacina.
Mas os centros de pesquisas brasileiros são obrigados a cobrir todos os custos dos participantes, incluindo alimentação e transporte, além de prestar todo o atendimento necessário em caso de surgirem efeitos adversos. “No caso do desenvolvimento de medicamentos, o participante tem direito a receber o remédio até o fim da vida, enquanto precisar dele”, explica Venâncio. Além disso, todo participante tem o direito a receber o melhor tratamento disponível para determinada doença – essa determinação é aplicada internacionalmente desde o caso de Tuskegee. “Para avaliar os efeitos de um novo medicamento, os participantes podem ser divididos em dois grupos, sendo que um deles deve obrigatoriamente receber o medicamento mais eficaz disponível no mercado”, informa o coordenador do Conep. “Não é aceitável utilizar placebos e recusar, assim, tratar a doença de que o participante é portador”.
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