O estudo que aponta a existência de um suposto favorecimento na distribuição e recomendação de vídeos do presidente Jair Bolsonaro (PL) no YouTube não tem fundamentação científica. Produzido pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), laboratório que não esconde seu ativismo de esquerda, o levantamento apresenta erros básicos como amostra irrisória e dados equivocados de como funcionam as plataformas de streaming.
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Para defender a tese de que o YouTube estaria intensificando “bolhas” de apoiadores de Bolsonaro, os pesquisadores fizeram 18 visitas-teste na plataforma (que tem milhões de usuários) com perfis diferentes. A conclusão de que haveria algum privilégio a Bolsonaro se deu pelo fato de um vídeo da Jovem Pan, de uma entrevista com o presidente que acabava de ser veiculada e já tinha 4 milhões de visualizações, estar entre os conteúdos indicados 14 vezes.
Com esse argumento, a Coligação Brasil da Esperança, que reúne apoiadores do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acionou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para tentar impedir esse hipotético mecanismo que prejudicaria, em tese, o ex-presidente.
O professor de estatística da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Wagner Bonat, explica que o levantamento do NetLab tem muitos erros estatísticos, começando com a amostra ínfima. Poderiam ser citados outras falhas, como desprezar a periodicidade da atualização da página inicial do YouTube – um usuário, por exemplo, pode ter visto duas ou três vezes a mesma página inicial, sem prova nenhuma de privilégio em relação aos vídeos do presidente.
“Além disso, não se pode provar com esses dados algum privilégio ao vídeo com o presidente. Para ser privilégio, o estudo estaria assumindo que o YouTube joga os vídeos aleatoriamente na página inicial, mas não prova que é assim”, disse o estatístico. As métricas básicas de ranqueamento da plataforma envolvem o tempo em que os usuários permaneceram no conteúdo, quantidade de visualizações, curtidas e comentários. Os vídeos mais populares e que, consequentemente, vão para a página inicial são conteúdos bem visualizados, com engajamento de curtidas e comentários e também os vistos até o final.
“E é por isso que a Jovem Pan aparece para mais pessoas, pois eles têm muita visualização”, afirmou. O professor Wagner Bonat explicou que quando o usuário entra no YouTube com um perfil anônimo, a plataforma ainda não sabe as preferências desse indivíduo. Dessa forma, o YouTube vai mostrar o que é mais popular na plataforma como um todo. Ele exemplifica que podem aparecer as músicas mais tocadas, podcast mais famoso e notícias mais acessadas.
No estudo da UFRJ, é apresentado um print de uma das páginas iniciais analisadas. Com isso, já é possível ver que apareceu “top song 2022”, ou seja, as músicas mais tocadas deste ano, um vídeo do Flow podcast, outros tipos de estilos musicais como religioso e pop, e também o jornal da Jovem Pan que estava ao vivo, no momento que foi analisado.
O consultor de inovação e tecnologia Francisco Milagres também explicou que os usuários recebem um conteúdo que é mais relevante para aquele perfil e em um determinado tempo que o algoritmo está mostrando. “Dezoito amostras com uma população de mais de 30 milhões de pessoas que usam a internet em um período muito específico não significa nada”, afirmou.
Ele destacou que o usuário recebe o conteúdo que é mais relevante para aquele perfil e dentro de um momento que o algoritmo está mostrando. “E claro que é papel da plataforma não mostrar conteúdos ofensivos (…) Agora quando se fala de conteúdos que envolvem opinião, sendo importante ter opinião das mais diversas, não existe uma forma de dizer que o algoritmo está sendo direcionado, até porque esses critérios não são públicos”, disse Francisco.
Outro problema encontrado no estudo, já citado, é que não há aleatorização ou seleção ao acaso, elemento fundamental em estatística. “A estatística funciona com aleatorização. Deveria ser fixado um período, quantidade de amostras e justificar o motivo, calcular a quantidade necessária de amostras e ser sorteado o horário que iria acessar a página inicial”, afirmou o professor.
“Se entrar 12h, todo dia, pode aparecer a mesma coisa, porque, por exemplo, a Joven Pan tem programa ao vivo, e vai aparecer. Se entrar 2h da manhã será outra coisa. (…) Dezoito acessos é uma amostra muito pequena, não diz quais as condições delineadas”, complementou. Sendo que, algumas amostras foram analisadas em tempos próximos, embora em dias diferentes, como 13h, 13h30 e 13h40 e também 22h40 (mesmo horário em dois dias seguidos), 22h45, 22h35 e 22h30.
Vídeos recomendados
“Os canais mais recomendados são do próprio Grupo Jovem Pan (…) Isso indica que o usuário é encaminhado para o conteúdo da própria emissora, em um ciclo de “feedback loop””, diz o estudo. Bonat explicou que isso é normal, pois quando o usuário entra em um canal, outros vídeos relacionados ou do mesmo canal aparecem. “As tags vão levar a conteúdos similares porque os canais não querem perder a audiência. Por exemplo, se entrar em um canal do Lula, os vídeos recomendados também serão do Lula, pois a plataforma entende que você quer ver isso”.
Os canais da plataforma podem patrocinar seus vídeos para terem mais visualizações, mas isso não garante que será apresentado na primeira página do YouTube. Para isso, é necessário ter engajamento e visualizações.
Francisco Milagres lembrou que assim como as redes sociais, plataformas como o YouTube utilizam técnicas de SEO (Search Engine Optimization). “São técnicas que a própria Google vende para a pessoa gerar conteúdo, com palavras-chave que aumentam a repetição. Isso mostra para o algoritmo que mais pessoas têm interesse nesse conteúdo”, disse.
Assim como outras empresas, o YouTube não explica como funciona seu sistema de recomendação e, por isso, para concluir algum favorecimento seria necessário mais tempo e uma amostra bem maior. “Ninguém vai saber o sistema de recomendação do YouTube, Amazon e Netflix. Quanto melhor for, mais a pessoa irá permanecer na plataforma. Isso é um sistema de negócios. Até a televisão faz isso para manter a pessoa assistindo”, complementou o professor.
Plataforma reforça bolhas
A pesquisa da UFRJ também afirma que a plataforma estaria reforçando bolhas e, especialmente, favorecendo a visibilidade da Jovem Pan em relação a outras fontes de informação. O estatístico evidenciou que, realmente, pode formar bolhas, pois cada usuário procura o que lhe interessa. Mas os canais da plataforma buscam as melhores formas de atrair o público, por meio de tags e títulos chamativos.
“É uma questão de quem consegue melhor fazer o sistema interno funcionar. Isso envolve estratégia de tags e tráfico interno”, destacou Wagner. Ele reforçou que, por isso, é importante uma alfabetização em estatística, ou seja, as pessoas precisam entender como o algoritmo funciona e também para poder “sair” desse algoritmo.
Francisco Milagres também explicou que diversos canais na plataforma utilizam de bons títulos, palavras-chave e conteúdos "linkados". “Eles usam um meio que é legal para fazer publicidade e promover conteúdo. Cada canal usa as ferramentas disponíveis pela plataforma. E essa é a forma que o YouTube e Google ganham dinheiro, aumentando a retenção, o tempo de visualização e com isso entendendo melhor o perfil das pessoas para vender publicidade”.
Outros erros do estudo
A pesquisa também compara os canais de conteúdo informativo que aparecem como primeira recomendação no YouTube com o Google Trends (principais pesquisas do momento). Entretanto, são plataformas diferentes, ou seja, a procura por assuntos também pode ser divergente. “Por exemplo, se tiver um jogo de futebol naquele momento, será procurado isso no Google, mas no Youtube pode ser que não”, afirmou o professor.
O estudo foi coletado entre os dias 23 e 30 de agosto de 2022, período das sabatinas dos presidenciáveis no Jornal Nacional. Dessa forma, um dos vídeos mais recomendados foi a entrevista do presidente ao programa Jovem Pan, após sua ida à Globo – utilizado na pesquisa para demonstrar o suposto privilégio da plataforma. Contudo, o vídeo foi assistido, em um período curto, por muitos usuários. Por conta da grande quantidade de visualizações, o YouTube apresenta conteúdos com alto engajamento, como fez com essa entrevista.
“É logico que foi esse vídeo. Deve ter sido o vídeo que teve mais wathtime [tempo de exibição] e mais views, deve ser um dos vídeos mais populares daquele canal. Então o YouTube mostrou esse, ainda mais por terem utilizado um usuário anônimo”, disse Wagner.
O estudo também desconsiderou outros canais que aparecem na pesquisa, somente analisando canais informativos. O professor diz que isso é questionável. “Aquele canal (como o da Jovem Pan) pode ser um nada do perto do todo que o YouTube está mostrando. Em estatística, chamamos de uma amostra viciada. Procuro o que quero ver”.
A análise do NetLab apresenta outra pesquisa sobre recomendações no YouTube de canais de "extrema-direita" e "extrema-esquerda". “Na tentativa de manter os usuários na plataforma a qualquer custo, Lauren Bryant (2020) chama atenção para o risco do YouTube estar se tornando uma poderosa ferramenta de recrutamento de apoiadores da extrema-direita - o que pode afetar o resultado das eleições”, citou o estudo.
Todavia, a mesma pesquisa citada apresenta que a plataforma também recomenda canais de extrema-esquerda. Sendo assim, poderia sugerir que esse meio estaria recrutando apoiadores esquerdistas para afetar as eleições também e não somente da extrema-direita.
“O gráfico apresentado pela pesquisa mostra a polarização do Brasil, mas não tem relação com o YouTube favorecer alguém. Isso mostra o retrato da audiência atual. Em termos estatísticos, o relatório não tem fundamento. É uma amostra muito pequena, amostras mal coletadas que não foram planejadas e fazem afirmações tentando algum cunho científico que não tem”, finalizou o professor de estatística.
Resposta do Youtube
Procurado pela reportagem, a assessoria do Youtube declarou: "Nosso sistema de recomendações busca ajudar as pessoas a encontrarem vídeos que lhes ofereçam algo útil e interessante. Para fazer isso, nos baseamos em vários tipos de "sinais", ou seja, dados que alimentam o sistema. Esses sinais incluem cliques, tempo assistindo, respostas a pesquisas, número de compartilhamentos, números de cliques em “gostei” e “não gostei”, entre outros”.
Em nota, o Youtube explicou que o sistema de recomendações vem passando por atualizações desde 2019 visando melhorar a plataforma. “Lembramos que o YouTube é uma plataforma aberta, em que qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, desde que esteja de acordo com nossas políticas de comunidade. Esse robusto conjunto de regras está em constante processo de evolução e busca garantir equilíbrio entre liberdade de expressão e a segurança dos nossos usuários”.
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