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Um estudo recém-publicado por pesquisadores da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, sugere que o uso de canabidiol, (CBD), derivado da maconha, poderia apresentar benefícios contra danos pulmonares causados em quadros graves de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) - uma das principais causas de morte em pacientes com Covid-19.
Mas especialistas alertam para o que chamam de "campanha de marketing" em favor de medicamentos sem comprovação científica e, no caso da cannabis, para possíveis tentativas de emplacar a dita "maconha medicinal" - termo equivocado cujo objetivo é insinuar que o uso da planta como um todo, incluindo o recreativo -, seria benéfico.
A pesquisa, que ainda está na fase pré-clínica, abre uma nova frente de discussão a respeito do uso de uma substância não chancelada pela ciência no combate à Covid-19. Além dela, há outras como cloroquina e hidroxicloroquina, para as quais ainda faltam estudos que comprovem sua eficácia.
Publicado pelo periódico científico Mary Ann Libertie, o estudo, que conta com uma co-autora brasileira, a pesquisadora Évila Lopes Salles, afirma que o canabidiol limitaria os danos pulmonares causados pela chamada Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) - principal causa de mortalidade em casos graves de algumas infecções virais respiratórias, como a Covid-19.
O CBD não possui efeitos psicoativos e está entre as 113 substâncias derivadas da cannabis já conhecidas.
"Os sintomas foram total ou parcialmente revertidos e levados a condições normais após tratamento com CBD", afirmam."[...] O tratamento com CBD reduziu a infiltração de neutrófilos, sugerindo um papel anti-inflamatório de CBD para limitar a progressão da SRAG".
Há evidências suficientes sobre o canabidiol?
Segundo os pesquisadores, "numerosos estudos" relatam que o canabidiol é capaz de agir como um "reforço" imunológico, limitando os efeitos adversos de doenças inflamatórias. Por esta razão, afirmam que se mostra razoável investigar se a substância pode ser agente terapêutico para tratar infecções respiratórias virais graves, como a provocada pela Covid-19.
"Na ausência de vacinação e tratamentos definitivos para a Covid-19, uma modalidade terapêutica tal como os efeitos do CBD poderia ser extremamente interessante", sugerem.
"Há várias evidências de que o CBD age por meio da TRPV1, uma proteína termossensível presente em nosso corpo. Este receptor pode ser ativado por mudanças na temperatura, dor, inflamação e calor", explicou à Gazeta do Povo, por e-mail, o responsável pela pesquisa, Babak Baban, médico imunologista na Universidade da Georgia, Ph.D pela Universidade de Londres. "Uma vez ativado, o receptor afeta, indiretamente, dois dos receptores e principais componentes do sistema endocanabinóide, mobilizando todo o sistema canabinóide do nosso organismo".
No entanto, os efeitos anti-inflamatórios do canabidiol ainda são pouco compreendidos pela ciência - e os próprios pesquisadores reconhecem o fato. Ouvido pela reportagem, o médico Marcelo von der Heyde, diretor-secretário da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPSIQ), afirma que ainda não há consenso na medicina a respeito da aplicação clínica da substância.
"É importante dizer, primeiramente, que as poucas informações que temos sobre a aplicação do canabidiol dizem respeito à área neurológica. Em outras áreas, existem apenas artigos iniciais, e pouquíssimos são tidos como promissores", diz. "É sabido, sim, que o canabidiol tem alguma ação imunológica, principalmente anti-inflamatória. Mas não se sabe exatamente qual é sua aplicação clínica, é algo que não está bem estabelecido".
Ele explica que, embora se tenha conhecimento a respeito dos mecanismos biológicos humanos que usam o sistema endocanabinóide como forma de modular a imunidade, é preciso muita cautela. Em determinadas situações, por exemplo, o especialista afirma que uma atividade anti-inflamatória pode ser "maléfica".
"Por exemplo, se considerarmos um quadro inicial de Covid-19, uma atividade inflamatória tende a ser benéfica, pois fará com que o corpo ganhe a batalha contra o vírus", explica. "Portanto, uma ação imunossupressora nesse determinado momento [fase inicial] pode fazer com que o vírus ganhe e tenha mais chance de infecção. Há momentos em que é preciso uma inflamação como resposta ao vírus".
Em outros casos, contudo, quando existe excesso de inflamação, como é chamada a "tempestade inflamatória" causada pela Covid-19, fase na qual são causadas lesões ao pulmão, o especialista explica que podem haver evidências que revelem que os canabinóides poderiam modular a imunidade.
"Maconha medicinal e campanha de marketing"
Em artigo, Joshua D. Brown, do Centro de Avaliação e Segurança de Medicamentos dos EUA, alertou para o que chamou de "campanhas de marketing" que estariam sendo promovidas no país, em defesa dos supostos benefícios do canabidiol ainda não chancelados pela ciência.
Em geral, os apoiadores do CBD argumentam que o tratamento com a substância derivada da maconha seria relativamente barato e sem grandes efeitos adversos. Estudo citado por Brown em seu artigo, contudo, aponta justamente para graves efeitos adversos - como o aumento da infecção viral - causados após a administração do canabidiol.
"Talvez o melhor conhecimento médico atual sobre o impacto do canabidiol isolado em casos de infecção esteja limitado a um ensaio clínico de fase 3, com o Epidiolex, para distúrbios graves", explica Brown. "Neste ensaio, as evidências farmacológicas e clínicas sugerem que o CBD acaba por diminuir a capacidade de combater infecções e, portanto, contrapõe o argumento de seus potenciais usos clínicos como anti-inflamatório".
"Esse risco pode ser ainda mais alto para infecções virais e respiratórias. Dessa forma, a menos que as evidências se mostrem fortemente robustas, devemos recomendar que pacientes evitem o uso de CBD e outros canabinóides durante a pandemia. Campanhas de 'marketing' que afirmam que a substância garante o 'reforço do sistema imunológico' ou tem efeito antiviral devem ser precisamente denunciadas a órgãos reguladores como o Food and Drug Administration (espécie de Anvisa dos EUA)".
Brown ainda chama a atenção para o fato de que "farmacêuticos devem abordar a questão com base em evidências, não cedendo ao sensacionalismo da mídia a respeito de hipóteses infundadas e 'relatos de casos'". "Os farmacêuticos devem incentivar a saúde pública seguindo as orientações federais e estaduais, e promovendo essas práticas com os pacientes. Farmacêuticos são especialistas em segurança de medicamentos e agora é a hora de fornecer essas informações da melhor maneira possível", afirmou.
Marcelo von der Heyde, que também atua em hospitais das universidades UFPR e PUCPR, afirma que há necessidade de se debater em separado o uso da planta maconha em si e da substância canabidiol de forma isolada. Ele reforça ainda a utilização equivocada e tendenciosa do termo "maconha medicinal". À Gazeta do Povo, em 2019, ele havia destacado que "existe um objetivo claro por trás do uso desse nome. A confusão é proposital, porque sugere que a maconha, em si, é medicinal. Confunde-se, assim, o uso clínico com o uso recreativo, que demanda da sociedade uma outra discussão, completamente diferente”.
"Esse termo, maconha medicinal, foi escolhido a dedo porque dá a ideia de que fumar maconha faz bem para o corpo. A ideia de que a maconha pode ser medicinal estimula o consumo recreativo", disse, à época.
Roedores não foram submetidos à Covid-19
Outros dois pontos do estudo pré-clínico devem ser observados com cautela. O primeiro deles diz respeito ao fato de que o ensaio, realizado com roedores do tipo camundongo, não submeteu os animais ao coronavírus propriamente dito ou a qualquer outro agente viral real.
Do contrário, os pesquisadores tentaram induzir artificialmente os animais a um quadro similar ao da chamada Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Para isso, injetaram nos roedores uma versão sintética do RNA do Sars-CoV-2, chamada de "Poli (I:C), que provocou nos animais reações como a diminuição de oxigênio no sangue, a chamada "tempestade inflamatória", e a destruição do tecido pulmonar. Os pesquisadores garantem que os sintomas simulados são "complexos" como os do coronavírus.
"Temos muita esperança de que obteremos os mesmos efeitos com o vírus de fato. Na verdade este é o nosso próximo passo, trabalhar com o vírus em parceria com um outro time de pesquisadores", disse Babak à Gazeta. "Os estudos sugerem fortemente que a administração intranasal de altas doses de Poli (I: C) em um murino [roedor] pode ser um modelo prático de trabalho para investigar e ajudar a entender melhor os mecanismos responsável pela Covid-19s".
É comum entre os pesquisadores a utilização de mecanismos de simulação de doenças nos animais - as chamadas variações semelhantes. "Até algo do modelo pré-clínico ser aprovado demora bastante tempo, e na pandemia não temos esse tempo", defende von der Heyde. "Medicina baseada em evidência leva tempo".
"Existe uma tendência quando se trata de uma doença mais grave ou para a qual ainda não existe cura, e os modelos animais são vistos como 'promissores' e acabam sendo levados para a clínica de forma errada", diz. "Por exemplo, algum estudo acha alguma substância que reduz tal tipo de câncer no rato e isso acaba posto como se fosse uma nova cura para o câncer".
Com relação a esse estudo pré-clínico, até que se chegue a um consenso na ciência, é preciso passar por pelo menos três fases de ensaios clínicos e, em última instância, apenas quando o canabidiol for administrado em humanos, e com o próprio coronavírus, será possível verificar sua segurança e eficácia, ou não.
Procurada, a Sociedade Brasileira de Infectologia não respondeu se considera os resultados do teste e a indução artificial à SRAG como promissores e disse que não "comenta estudos em andamento". Questionado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também não respondeu sobre o tema em questão.
Foram analisados apenas 15 roedores no estudo - amostragem considerada baixa para se chancelar qualquer descoberta científica. Quanto maior a amostragem, e quanto mais pesquisas de natureza semelhante forem realizadas, mais consolidado é o resultado. "É compreensível, por ser um estudo médio, mas é uma amostragem muito pequena pra tomar qualquer tipo de decisão. Em geral, sempre há um número muito maior de animais testados antes do clínico. Estou falando de mais de centenas. O canabidiol, portanto, é um possível candidato - nada além disso", salienta von der Heyde.
"Mais pesquisas são necessárias antes de se ter uma decisão conclusiva acerca do uso de CBD no tratamento contra SRAG e casos severos de doenças respiratórias, tais como os últimos estágios da Covid-19", reconhecem os pesquisadores autores do estudo.