Pessoas em pânico escrevem para Jennifer Doudna. Elas têm uma doença congênita. Ou uma criança doente. Ou carregam o gene do mal de Huntington ou alguma bomba-relógio mortal conectada a cada célula de seu corpo. Todos sabem que Doudna descobriu uma nova tecnologia de edição genética, chamada CRISPR. Mas nem todos procuram pela sua ajuda. Uma mulher, mãe de uma criança com síndrome de Down, explica: “Amo meu filho e não mudaria nada nele. Ele tem algo tão especial. Ele é amoroso de uma maneira única. Jamais mudaria isso.”
A cientista chora contando essa história. “Isso te faz pensar profundamente no que significa ser humano, não?”, ela diz.
Doudna tem feito várias reflexões profundas sempre que pondera as consequências do CRISPR. O mundo da biologia molecular está em polvorosa com essa nova técnica de engenharia genética. Cientistas têm transformado o sistema imunológico bacterial natural em uma ferramenta de laboratório para cortar e reordenar genes em uma célula – uma inovação que pode ser usada para direcionar mutações genéticas ligadas a inúmeras doenças.
O CRISPR não é o primeiro método de manipulação genética, mas de longe trata-se do mais barato, fácil e versátil. São muitos atributos que têm gerado doses inacreditáveis de empolgação e apreensão. Embora a técnica ainda não seja aplicada em seres humanos, isso está no horizonte. Cenários preocupantes envolvem melhorias genéticas e aplicações puramente cosméticas.
A tecnologia ainda está sendo aprimorada. Dois bioquímicos de Harvard relataram recentemente na revista Nature ter encontrado uma maneira de isolar uma única letra do genoma em um experimento laboratorial. Tudo isso acontece com uma velocidade estonteante. O CRISPR detonou dois debates paralelos, ambos com Doudna no centro.
Entre o dilema ético e a briga por milhões
O primeiro é o dilema ético levantado pela mãe da criança com síndrome de Down: até onde podemos ir na edição do genoma humano? A nova técnica potencialmente permite mudanças nas células germinais dos humanos, o que pode levar a modificações não apenas no genoma de um indivíduo, mas de todos os seus descendentes. Muitos pesquisadores se dizem preocupados com os ainda desconhecidos efeitos de longo prazo.
Amo meu filho e não mudaria nada nele. Ele tem algo tão especial. É amoroso de uma maneira única. Jamais mudaria isso.
O segundo debate diz respeito a quem exatamente criou o CRISPR e, consequentemente, deve ser recompensado com a patente. Há muito dinheiro em disputa. Prestigiosas instituições científicas estão em guerra, com acusações trocadas nas redes sociais. A mensagem: ciência é um negócio.
As duas questões são tão espinhosas que facilmente se sobrepõem à forma como incontáveis cientistas foram obrigados a mudar a forma de fazer pesquisas básicas. Milhares deles estão usando a técnica para entender a origem genética das doenças. Isso não é o futuro; é o agora.
Em breve, o CRISPR pode modificar geneticamente as plantas que serpenteiam no seu armazém preferido. Hoje a técnica já é usada para desenvolver um cogumelo que não fica marrom facilmente, sem a necessidade de regulamentação – o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos entende que não há genes de outros organismos no cogumelo.
Doudna é parte da guerra de patentes da mesma forma que está entre os porta-vozes do debate ético. “É uma vida um pouco maluca”, diz.
Da lava havaiana à vanguarda da edição genética
Aos 52 anos, Doudna tem consciência plena do que é ser uma mulher em uma profissão dominada por homens. Ela não costumava ser. Mantinha a cabeça baixa. Fazia seu trabalho de laboratório. Publicava. Era promovida e elogiada. Mas à medida que se tornava mais conhecida, rotineiramente citada com possível ganhadora de um Nobel, ela notava que não havia mulheres nos degraus acima: “Vendo painéis sem mulheres presentes. Vendo níveis maiores de administração com nenhuma ou poucas mulheres.”
Doudna nasceu em Washington DC. Seu pai, um redator de discursos da Força Aérea, teve o impulso de se tornar professor de Inglês e, após concluir doutorado na Universidade Michigan, mudou-se com a família para o único lugar que lhe ofereceu emprego: a Universidade do Havaí.
A jovem Jennifer nunca imaginou se tornar uma cientista. Na escola ela não se via com nenhuma qualidade especial para isso. Mas demonstrava interesse no mundo natural.
“Havia espécies raras de sapos que existiam apenas na nossa ilha. Tínhamos todo o tipo de plantas que só se vê em um ecossistema como esse. Havia cobras cegas que viviam em tubos de lava”, ela contou durante uma visita a Washington no início deste ano. Ela perguntava a si mesma: Como isso aconteceu? Como as coisas evoluíram?
Uma professora do ensino médio, Miss Wong, a encorajou. Um teste vocacional indicou o caminho da engenharia civil, o que quer que isso significasse. Ela ainda não se via como cientista.
A mídia me passava a impressão de que a ciência era algo de caras velhos brancos, pessoas que pareciam com Albert Einstein. Não gente como eu.
Na Faculdade de Ponoma, ela estudou bioquímica. Embora insegura sobre suas perspectivas, ela concorreu a uma vaga na Escola Médica de Harvard. Ela conseguiu a vaga e concluiu doutorado no laboratório de Jack Szostak, eminente figura nas pesquisas de origem da vida. Dali ela seguiu para seu próprio laboratório na Universidade da Califórnia. E o CRISPR veio logo atrás.
Da bactéria fez-se o CRISPR
Ela não inventou o CRISPR; a bactéria o fez. É um sistema imunológico incrível que atesta inovações que emergem da seleção natural darwiniana. No código genético da bactéria são repetidas sequências de letras (aminoácidos) que até recentemente eram vistas como resto de DNA. Cientistas que o estudaram começaram a se referir à sequência como repetições curtas agrupadas regularmente espaçadas de palíndromo (CRISPR, na sigla em inglês).
Pesquisadores gradualmente descobriram que essas sequências eram cosanguíneas de cópias de segmentos de DNA em vírus que haviam atacado previamente a bactéria. Na essência, a vida é feita em torno de informação, e as bactérias mais humildes mantêm um registro das experiências ruins anteriores a vir a pique.
O sistema CRISPR age rapidamente. Quando um vírus aparece, o sistema identifica o invasor familiar e direciona o mecanismo molecular a desarmá-lo. Como esse sistema natural tornou-se aproveitável por seres humanos virou ponto de discórdia entre advogados de patente. A narrativa predominante aponta para Doudna. Ela escreveu em parceria com a cientista francesa Emmanuelle Charpentier, em 2012, um paper explicando como o CRISPR poderia ser utilizado para cortar genes em um tubo de teste e criar um novo método de edição genética.
Pouco após a descoberta, uma jovem cientista chamada Feng Zhang, de um consórcio entre o Instituto Broad, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e Harvard, publicou um paper mostrando como o CRISPR poderia ser aplicado a glândulas mamárias. George M. Church, um extravagante geneticista na Harvard Medical School, publicou resultado similar na mesma época.
Talvez inevitavelmente, os pedidos de patente geraram uma batalha tremenda, colocando não apenas Doudna e Charpentier contra Zhang, mas também as instituições – mais notavelmente Universidade da Califórnia contra Broad/ MIT/ Harvard. Uma guerra que pode se arrastar por anos.
As cientistas também têm participação em start-ups que desejam comercializar a tecnologia CRISPR. Doudna, por exemplo, é co-fundadora de três - Caribou Biosciences, Intellia Therapeutics e Editas Medicine.
Há muito dinheiro voando ao redor. Doudna e Charpentier receberam cada uma US$ 3 milhões pelo prêmio de descoberta no Life Sciences de 2015. Também são repetidamente mencionadas como possível prêmio Nobel – honra sempre acompanhada de recompensas de sete dígitos. Zhang tem seus argumentos, Church alguns outros. O Nobel, por regulamento, não pode ir para mais de três pessoas pela mesma descoberta.
Em janeiro, Eric Lander, chefe do Broad Institute, publicou um longo, quase novelístico artigo chamado “Os heróis do CRISPR”. Ele dividiu amplamente o crédito pelo CRISPR, começando com um obscuro cientista espanhol que, nos anos 1990, foi o primeiro a começar a observar esses repetições.
Um grande tumulto se seguiu. O artigo não trazia conflitos de interesse, pois Lander não tinha investimento pessoal na luta pela patente. Ainda assim, críticos diziam que o texto de Lander não dava o devido crédito a Doudna e outros cientistas, o que era favorável à sua colega Zhang. Lander insistiu que não tentava defender ninguém.
Mas isso é a ciência hoje: pessoas são suscetíveis. Pesquisa não se resume apenas à perseguição pelo conhecimento. Descobertas são lucrativas e quase todo mundo está no jogo.
Nos laboratórios pelo mundo, o CRISPR rapidamente se tornou a ferramenta favorita dos biólogos moleculares. Eles podem aplicar os genes em um rato, por exemplo, e ver como uma mutação pode levar a um tumor.
“Estou absolutamente confiante que o CRISPR caminha para acelerar o desenvolvimento de tratamentos para controle do câncer e curar alguns”, diz Phillipe Sharp, biólogo do MIT e ganhador de prêmio Nobel.
Em um sonho, Doudna apresentou o CRISPR para Hitler
CRISPR oferece a promessa de, algum dia, se tornar a grande ferramenta de terapia genética. Mas os cientistas admite que ainda não estão prontos para isso. A terapia genética tem uma história conturbada. Você comete um erro e o paciente morre, caso de Jesse Gelsinger, um jovem de 18 anos morto em um teste clínico de 1999.
A maior preocupação vem com edição germinal em seres humanos. Se há uma modificação no gene de um embrião muito jovem, todas as células serão afetadas, inclusive as reprodutivas. Isso será transmitido a todos os descendentes. Basta isso acontecer algumas vezes para mudarmos o gênero humano como o conhecemos. Se isso for feito em larga escala, pode mudar toda a espécie. Eliminar doenças terríveis, como a de Huntington, parece ótimo. Mas a maioria das doenças e traços humanos têm uma origem genética complexa de difícil compreensão plena.No início de 2014, Doudna detalhou como pesquisadores manipularam pela primeira vez o genoma em embriões de macacos.
“Quanto levará até alguém testar isso com o embrião humano?”,questionou Doudna ao seu marido, um professor da Universidade Berkeley.
Doudna cria problemas para si mesma. Ela tem um sonho particularmente horrível (contado pela primeira vez à revista New Yorker) em que uma colega pede a ela que explique o CRISPR a um homem com um pequeno bigode engraçado - um homem que ela de repente percebe que era Adolf Hitler.
No começo de 2015, Doudna estava entre os que defendem limites na aplicação de pesquisas com o CRISPR. A comunidade científica decidiu que era necessário definir restrições às pesquisas sobre técnicas de engenharia genética.
Em dezembro de 2015, por três dias, cientistas da Europa, China e América do Norte discutiram o CRISPR. Falaram sobre o histórico de eugenia. Ouviram bioeticistas. Consideram as possibilidades da nova tecnologia. Ao fim, definiram parâmetros para que as pesquisas pudessem seguir adiante.
Os cientistas determinaram que, por enquanto, CRISPR não pode ser usado para edição genética em embriões humanos com a finalidade de estabelecer uma gravidez. Enfatizaram que mexer com qualquer célula germinativa do ser humano só será permitido após amplo consenso da sociedade de que essa é uma boa ideia.
Logicamente, um acordo científico não tem força de lei. Diferentes países têm diferentes legislações. E se não pode ser realizada em com kit de química para crianças, o CRISPR também não exige um laboratório de alta tecnologia. Questionada sobre como o mundo pode impedir o abuso do CRISPR, Doudna faz uma pausa. “É uma questão difícil”, diz, após o silêncio. Então complementa: “Vamos dar um passo atrás por um momento. Não poderíamos estar tendo essa discussão sobre qualquer tecnologia poderosa?”.
O conhecimento tende a ser unidirecional se o assunto é o segredo dos átomos ou as maravilhas do DNA. Descobertas científicas podem ser explosivas. Doudna, então, responde a sua própria questão. “Você não pode desaprender isso. Não pode deixar de lado.”