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Ilegalidades no processo

Ex-assessor de Bolsonaro está preso por viagem que não existiu; defesa aponta abusos do STF

Filipe Martins foi preso sem prova de crime e transferido para uma prisão comum, onde não recebe visitas por 30 dias e tem ouvido provocações de criminosos (Foto: MRE)

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Preso pela Polícia Federal (PF) durante a Operação Tempus Veritatis sob argumento de que teria deixado o país em avião oficial sem passar pelos controles migratórios, o ex-assessor de Jair Bolsonaro, Filipe Martins, entregou às autoridades documentos que comprovam sua permanência no Brasil. A defesa também pontuou que sua liberdade não coloca em risco as investigações ou a ordem pública, mas o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda não revogou a prisão.

O primeiro pedido de liberdade foi solicitado pelos advogados no dia 9 de fevereiro durante audiência de custódia de Filipe, e foi negado por Moraes cinco dias depois. A defesa entrou com nova solicitação em 19 de fevereiro, e aguarda posicionamento do ministro.

Juristas entrevistados pela Gazeta do Povo afirmam que a prisão pode ser considerada ilegal. “Se a defesa demonstra que os dados que embasaram a decisão estão errados, é necessário rever a prisão”, aponta Maurício Zanoide de Moraes, professor de Processo Penal da USP e autor de diversos livros sobre Direito Criminal.

Assim como ele, o doutor em Direito Processual Penal, Gustavo Henrique Badaró, afirma que premissas utilizadas para uma prisão preventiva precisam ser comprovadas para manter o indivíduo em cárcere. “Se for mostrado que essa premissa é falsa e não houver outro fundamento, o normal é que o juiz acabe revogando a prisão, que foi equivocadamente decretada.”

No entanto, até esta quinta-feira (29), o ex-assessor para assuntos internacionais da Presidência no governo de Jair Bolsonaro (PL) segue em uma cela do Complexo Médico Penal (CMA), em Pinhais, no Paraná. Na unidade prisional — que ficou conhecida por receber presos da Lava Jato —, Filipe não pode receber visitas durante 30 dias e tem relatado dificuldades em relação à água e alimentação disponíveis.

“Parece ser uma forma de coerção para que ele se sinta abandonado e sem defesa”, alerta o advogado Ricardo Scheiffer, ao pontuar que seu cliente já ficou sem comer devido à qualidade duvidosa do alimento que recebeu. “E ele contou que é impossível tomar a água de lá, algo que precisa em grande quantidade porque sofre de problemas renais”, completa.

Scheiffer relata ainda que o ex-assessor foi proibido de receber itens de vestuário e higiene durante cerca de 10 dias, não pode ser visitado pelos familiares por um mês, e que a defesa teme pela sua segurança. “Ele está sozinho na cela, mas tem contato em diversos momentos com presos condenados, e relata já ter sofrido provocações”, pontua.

Em nota enviada à Gazeta do Povo, o Departamento Penitenciário do Paraná (Depen-PR) esclarece que pessoas privadas de liberdade passam por um período de triagem de 30 dias para serem avaliadas, enquanto as famílias dão entrada na documentação exigida para visitas nesse prazo. “Quanto ao envio de materiais, é permitido receber itens de vestuário e higiene, conforme lista pré-estabelecida pela unidade penal.”

O departamento explica também que a água oferecida “é potável e de fornecimento comum”, e que a alimentação é preparada “por empresa terceirizada, com cardápio desenvolvido por nutricionista e devidamente fiscalizada diariamente por comissão técnica de alimentação”.

O que diz a decisão de Alexandre de Moraes a respeito da prisão?

O ex-assessor foi preso dia 8 de fevereiro na residência da família na cidade de Ponta Grossa, Paraná, na operação da PF que teve como alvo o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados. A ação investiga suposta vinculação deles aos atos de 8 de janeiro de 2023 e a uma possível tentativa de golpe de Estado. Ao todo, quatro pessoas tiveram prisão preventiva decretada: o ex-assessor e três militares.

No caso de Martins, o motivo que embasou a prisão foi o fato de seu nome constar na lista de passageiros que viajaram a bordo do avião presidencial com Bolsonaro dia 30 de dezembro de 2022 rumo a Orlando, nos Estados Unidos, sem registros formais da saída ou entrada no controle migratório do Brasil.

Essa lista, segundo Representação da Polícia Federal (PF), poderia indicar a evasão do ex-assessor do país “para se furtar de eventuais responsabilizações penais”, já que a localização dele seria “incerta”. A Procuradoria-Geral da República concordou com o argumento, e o ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão do investigado.

Porém, a defesa entregou à PF dia 19 de fevereiro uma série de documentos que contrariam a afirmação de suposta fuga. “Mostramos as passagens aéreas de Brasília para Curitiba em nome dele e da mulher, datadas de 31 de dezembro de 2022, assim como os comprovantes das bagagens que despacharam, e a mensagem de confirmação da companhia aérea”, informa o advogado Ricardo Scheiffer. Também foram enviadas fotos do casal com amigos na região de Ponta Grossa.

A defesa entregou à PF no dia 19 de fevereiro uma série de documentos que contrariam a afirmação de suposta fuga. Imagens: Arquivo pessoal

De acordo com ele, Filipe e a esposa vieram de mudança para o Paraná e permaneceram na residência de familiares. “Inclusive, a PF o prendeu nesse endereço, então sua localização não era ‘incerta’, como descreve a decisão pela prisão”, completa o advogado, ao citar ainda que as imagens das câmeras dos dois aeroportos podem confirmar essa viagem, assim como o deslocamento dos telefones celulares do casal.

Defesa de Filipe Martins ainda não teve acesso a todos os documentos da investigação

Scheiffer informa que esses dados já foram solicitados pela defesa, assim como as demais peças da investigação. “Mas, além de termos que buscar os autos pessoalmente em Brasília, nos entregam somente parte do material, sem as supostas provas”, diz o advogado de Ponta Grossa, no Paraná, que não recebeu nem mesmo a lista de convidados para a viagem citada na decisão.

Assim, explica que não sabe com exatidão em que deve fundamentar a defesa, já que não tem acesso à totalidade da denúncia. “O que sabemos é que estamos diante de um erro. O nome do Filipe poderia constar na lista dos convidados do presidente para a viagem porque ele era assessor para assuntos internacionais, mas ele disse que não iria, que ia para a casa do sogro, e não embarcou”, ressalta, apontando até uma crise diplomática que poderia ser desencadeada a partir da afirmação da PF. Afinal, “estão dizendo que o sistema de controle do país é falho, omisso ou cúmplice”, aponta.

A Gazeta do Povo entrou em contato com a Força Aérea Brasileira (FAB) para solicitar detalhes a respeito do voo mencionado, mas foi informada sobre a proibição da “exposição de informações cotidianas que envolvem o deslocamento dos chefes de poderes e ministros de Estado”. A reportagem conseguiu acesso, no entanto, ao “desenho” da parte interna do avião com o nome dos passageiros e localização deles nos assentos do voo até Orlando realizado dia 30 de dezembro de 2022. Filipe não é citado.

A Gazeta do Povo também entrou em contato com a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e com o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, e ambos responderam que não se manifestariam. A Polícia Federal também informou que não responderia aos questionamentos "por se tratar de uma investigação em curso", e que "a instituição se manifesta exclusivamente perante o Poder Judiciário, respeitando os trâmites legais e os procedimentos estabelecidos pela justiça".

Prisão do ex-assessor Filipe Martins carece de fundamentação, dizem juristas

Diante dos fatos apresentados, o advogado e professor Gauthama Fornaciari, que atua há 20 anos como advogado criminalista, informa que o caso se encaixa na Lei 12.403, que estabelece aplicação de medidas cautelares para o investigado.

“Ou seja, a prisão pode ser considerada ilegal, pois certamente quaisquer das medidas previstas, aplicadas em conjunto ou isoladamente, são suficientes para assegurar a instrução criminal ou eventual risco de fuga”, informa, ao citar as possibilidades previstas no Artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP).

O doutor em Direito de Estado, Rodrigo Chemim, também aponta que a decisão do ministro cita mais dois argumentos para a prisão de Filipe que carecem de fundamentação na decisão. De acordo com ele, o ministro decretou a prisão para garantir a ordem pública e promover a instrução criminal, evitando que o investigado pudesse alterar alguma prova.

No entanto, o especialista não viu nenhum argumento referente à garantia de ordem pública no documento, e caracterizou como “superficial” a sugestão de que Filipe poderia comprometer a produção da prova se permanecesse em liberdade durante o processo.

De acordo com a defesa de Filipe Martins, as premissas da decisão não se sustentam porque Martins não exerce mais cargo público ou de influência, e já teve bens apreendidos durante a investigação. “Foram capturados celulares, tablets e outros itens”, pontua, citando ainda que o investigado prestou, de forma espontânea, seu depoimento à PF, além de "não ter saído do Brasil, pois jamais se escondeu ou se furtou de suas obrigações".

Defesa não foi informada a respeito da transferência de Filipe Martins

Além disso, a defesa aponta que os advogados e familiares não foram informados a respeito da transferência da Superintendência da Política Federal (PF) em Curitiba para a carceragem do Complexo Médico Penal (CMA), na Região Metropolitana da capital paranaense. A mudança foi realizada na última quinta-feira, 22 de fevereiro.

“Como levam um investigado sem prova de crime e sem flagrante para um local de criminosos condenados, sem nem informar a defesa para que possa saber onde seu cliente está?”, questiona Scheiffer, ao citar que descobriu a mudança devido a uma chamada de vídeo agendada com Martins na quinta-feira. “Quando enviei mensagem solicitando o link à Superintendência da Polícia Federal, não me responderam”, relata.

“O carcereiro que estava atendendo no horário de almoço disse que o Filipe não estava mais ali porque tinham recebido um e-mail do gabinete do Alexandre de Moraes solicitando transferência”, completa.

O ex-assessor foi levado para o presídio, em Pinhais, e relatou à defesa que a equipe do local também não tinha conhecimento sobre sua chegada. “Eles nem sabiam onde o colocariam”, comentou o advogado à reportagem da Gazeta do Povo, reafirmando que Martins não tem acusação de crime.

“Ele é simplesmente um investigado que, erroneamente, entenderam que teria meios de sair do país sem passar pelo sistema de migração”, finaliza.

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