Dois ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que votaram pela manutenção da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009, afirmaram à Agência Brasil que, à época, tinham em mente apenas o caso em julgamento. Porém, o entendimento de que a decisão do STF estabeleceu um precedente jurídico, a partir do qual as 19 condicionantes se aplicam a outros processos demarcatórios de terras indígenas, motivou a AGU a publicar portaria estabelecendo que as mesmas condições devem ser observadas em qualquer processo, inclusive os já finalizados. O julgamento do caso está previsto para começar nesta quarta-feira (23), no STF.
Relator do processo, que estabeleceu as condições para que cerca de 20 mil índios de cinco etnias se fixassem definitivamente na Raposa Serra do Sol, e os não índios deixassem a área de 1,74 milhão de hectares, o ex-ministro Carlos Ayres Britto considera que as 19 condicionantes fixadas para a Raposa Serra do Sol não se estendem automaticamente a outras áreas indígenas em processo de demarcação ou já existentes.
"Penso que as condicionantes não valem para outros casos", disse.
Já o ex-ministro Eros Grau, ao ser perguntado se levou em conta a hipótese de as regras estabelecidas em 2009 serem posteriormente estendidas para outros processos demarcatórios, respondeu que votou "o caso, para o caso, sem ter em mente nada senão o que deveria ser decidido" à época.
Britto e Grau são dois dos dez ministros que, em março de 2009, validaram a demarcação da Raposa Serra do Sol conforme a União havia determinado em 1998 e homologado em 2005. Durante o julgamento, apenas o ministro Marco Aurélio Mello votou pela anulação do processo administrativo de demarcação da área. Na época, Britto defendeu que, se aprovada, a 17ª condicionante, que proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas, só poderia vir a valer para o caso que estava em julgamento, ou seja, para a Raposa Serra do Sol. Britto se aposentou este ano. Grau deixou o STF em agosto de 2010.
Procurados, a ex-ministra Ellen Gracie não quis se pronunciar sobre o assunto e o ex-ministro Cezar Peluso não respondeu aos e-mails enviados pela reportagem por meio de sua secretária.
Portaria gerou protesto de índios e de organizações indigenistas
A chamada Portaria 303, publicada pela AGU em 2012, gerou protestos de índios e de organizações indigenistas. A Fundação Nacional do Índio (Funai) também manifestou preocupação com a iniciativa, alegando que ela restringe direitos indígenas ao tomar como base uma decisão não definitiva, uma vez que ainda falta o STF julgar os chamados embargos declaratórios apresentados ao processo. Ao menos 30 índios de várias etnias e diferentes regiões estão em Brasília para acompanhar a sessão do STF nesta quarta-feira.
Após protestos indígenas, inclusive com o bloqueio de estradas e com a ocupação do plenário do Congresso em protesto contra essa e outras iniciativas que os índios consideram prejudiciais aos seus interesses, a AGU suspendeu a entrada em vigor da portaria até que o STF aprecie os oito embargos e dê a palavra final sobre a validade das 19 condicionantes e se elas se aplicam a outros casos além da Raposa Serra do Sol.
Para o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Adelar Cupsinski, as manifestações dos dois ex-ministros à Agência Brasil têm um peso que não pode ser ignorado no julgamento de hoje à tarde, principalmente pelos ministros que assumiram depois de março de 2009.
"Dizer que as condicionantes se aplicam automaticamente a outros casos é uma interpretação extremamente equivocada e, a meu ver, essas manifestações reforçam os argumentos pela derrubada definitiva da Portaria 303", declarou o advogado, argumentando que, mais que anular a portaria, índios e militantes do movimento indigenista esperam ver as condicionantes anuladas. "Como essas condições não eram objeto da ação e foram propostas durante o julgamento (que considerou constitucional a demarcação da reserva em área contínua, não houve o contraditório, sem o qual elas não poderiam ser fixadas".
Índios contestam regra que proíbe ampliação de reservas já homologadas
O argumento de Cupsinski vai ao encontro do embargo declaratório proposto pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que sustenta que não cabe ao STF legislar, que não houve discussão prévia com a sociedade sobre as regras impostas com a aprovação das 19 condicionantes e que várias delas ferem os interesses das comunidades indígenas.
Entre as regras mais contestadas pelos índios estão, além da que proíbe a ampliação das reservas já homologadas, a que estabelece que o "relevante interesse público da União" no uso de riquezas minerais se sobrepõe ao direito das comunidades indígenas ao usufruto da terra; as que fixam que o usufruto indígena da terra não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, pesquisa, lavra e garimpagem de riquezas minerais, atividades que dependerão de aprovação do Congresso Nacional; a que autoriza a União a criar estradas e vias de transporte e instalar redes de comunicação e equipamentos públicos no interior de áreas indígenas sem estabelecer a necessidade de consulta e diálogo com as comunidades afetadas.
A AGU preferiu não comentar as declarações dos ex-ministros até que o STF julgue os embargos declaratórios.
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