Era uma noite de sábado e a escuridão parecia prenunciar mudanças. De repente, Edson sentiu queimar o olho direito. Num átimo, o projétil varou o globo ocular e foi se alojar em fragmentos no cérebro. Os sentidos aguçados pelo medo perceberam o pequeno vulto à sua frente. O olho são fitou o pirralho de 10 anos e o cano do 38 ainda fumegando. O pistoleiro precoce saiu como chegou, imerso na escuridão. Pensou não ter consumado o crime de encomenda, mas sua vivência no tráfico logo o faria perceber a baixa na concorrência. Terminava ali a história do Edson traficante e começava a de Edson Pereira Rodrigues, futuro líder comunitário.

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Edson era "patrão" de uma poderosa quadrilha do tráfico de drogas do Parolin. Sofreu a emboscada em 2000, ao invadir a rival Vila Pinto, hoje Vila das Torres, para cobrar uma dívida. Ele não morreu, mas o acontecimento o fez mudar de vida. O saldo negativo da quadrilha se mede pela desgraça: ele cego de um olho, um comparsa preso e outros 16 assassinados nos meses seguintes. "Se eu não parasse, iria pra vala, pro caixão." Edson, hoje com 32 anos, e o garoto que tentou matá-lo, aos 16, são sobreviventes num meio onde se vive muito pouco. Ele começou a reproduzir ainda na pré-adolescência as experiências vivenciadas desde muito cedo.

O pai abandonou a família quando Edson tinha 5 anos. Aos 7, perdeu a mãe para o câncer e depois viu o irmão traficante ser morto pela polícia dentro de casa. Era muita desgraça para uma criança. Ele suportou até os 12, privado de tudo. Foi então que caiu nas mãos do tráfico, levado pela vontade de ter um tênis da moda. O gerente da boca ofereceu R$ 10 para ele cuidar de umas pedras de crack. Na semana seguinte foram R$ 20. E assim Edson desfilou de tênis novo pelas vielas do Parolin. Esperto, percebeu que poderia ganhar mais dinheiro vendendo as pedras em vez de apenas guardá-las para os traficantes.

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Assim Edson começou a ascender na hierarquia do tráfico, ameaçando e expulsando os que estavam à sua frente. Em quatro anos, passou de guardador a "vapor" (o leva-e-traz de drogas), subiu ao posto de gerente da boca até conseguir sua própria organização. Uma turma feroz e bem armada. Edson assegura que nunca fumou, nunca cheirou e nunca matou, mas os parceiros morreram com pelo menos um homicídio nas costas. "Eu tinha carro, casa na praia, mas não tinha liberdade." Segundo o ex-traficante, toda vez que saía a polícia baixava para negociar sua liberdade. Geralmente seguravam o carro para forçar uma propina, diz ele.

O episódio do tiro levou Edson a uma situação até então inimaginável. As pessoas que ele amedrontava com armas passaram a freqüentar a casa dele com comida e solidariedade durante a convalescença. A atitude tocou o coração de Edson. Poucos acreditavam na regeneração, mas ela aconteceu. Levou dois anos pagando tudo o que devia no mundo do tráfico e passou a reparar os erros do passado trabalhando pela comunidade. Em 2001, candidatou-se à presidência da Associação de Moradores do Parolin e venceu de lavada. Foram 1.500 votos contra 80 do adversário. O traficante daria lugar definitivamente ao líder comunitário.

Volta e meia ele recebe ameaça de alguém cujos negócios são prejudicados por causa do processo de urbanização da favela. "Se para abrir uma rua for preciso derrubar o barraco do traficante, nós vamos derrubar", afirma. Na avaliação dele, o Parolin está virando uma Cidade de Deus, bairro violento do Rio de Janeiro notabilizado no filme homônimo de Fernando Meirelles. Os vizinhos vivem presos em casa, com cachorros e cercas elétricas. "A gente quer mudar essa imagem do bairro." Por enquanto ela não é nada boa. "Antes o herói da piazada era o Super-homem, hoje é o traficante", diz. Este personagem está presente no dia-a-dia da favela.

O traficante é aquele que acaba assumindo o papel de pai, de provedor da favela. Ele dá o tênis da estação, é o cara intrépido que já matou mais de 30. Foi por causa de um par de tênis – recorde-se – que Edson entrou no mundo do crime. "O jovem quer ter o tênis e a calça da moda, que todo mundo tem", diz. Ele agora está desenvolvendo um trabalho com os adolescentes do Parolin para evitar que entrem no "vale tudo" do tráfico atrás de dinheiro para entrar na moda. Já tem 430 alunos acessando a internet nos 15 computadores que instalou na associação de moradores. "O caminho é a gente oferecer algo mais atrativo que o tráfico."

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