Dois dias após a comitiva presidencial brasileira voltar de uma viagem aos Estados Unidos, para encontro com o presidente norte-americano Donald Trump, veio a informação de que parte do grupo havia contraído a Covid-19.
Para que informações como essas, sejam de figuras de autoridade ou privadas, possam ser levadas a público, é necessário o consentimento do proprietário do diagnóstico. Em geral, a lei estabelece como um dos direitos do paciente o sigilo de diagnóstico. Mas há situações excepcionais, como em uma pandemia ou quando o sigilo coloca em risco a vida de outras pessoas.
A resolução nº 1.605 de 2000 do Conselho Federal de Medicina (CFM), por exemplo, proíbe profissionais de saúde de revelar, sem o consentimento do paciente, informações de prontuário ou ficha médica. Dados pessoais de saúde são, além disso, classificados como "sensíveis" pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que espera o fim da pandemia para ser apreciada no Congresso.
Em casos de violação de segredo profissional, a Lei 2848 estipula pena de multa ou detenção de até um ano para o infrator. "O paciente pode entrar com ação de reparação de danos, contra o médico ou o hospital, e a indenização varia de acordo com o dano causado pelo vazamento de informação sigilosa", explica Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito Médico e sócia do Silva Nunes Advogados.
Exceções
No entanto, as medidas se alteram em contextos de emergência de saúde pública ou quando o sigilo de diagnóstico de um paciente ameaça a integridade da vida de outras pessoas.
Nesse sentido, o artigo 8º da lei 6.259 de 1975 não apenas permite como estabelece a obrigatoriedade de notificação exclusiva às autoridades sanitárias quanto à ocorrência, comprovada ou presumível, de casos de doenças transmissíveis, "doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena e doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde". A omissão de notificação pode implicar em multa ou detenção de até dois anos, segundo o artigo 269 do Código Penal.
Pelo menos 48 doenças ou agravos fazem parte da relação do Ministério da Saúde, a chamada Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública.
"A notificação compulsória de casos de doenças tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido. [...] A identificação do paciente de doenças referidas neste artigo, fora do âmbito médico sanitário, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de grande risco à comunidade a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio do paciente ou do seu responsável", afirma o documento.
Figuras públicas
A coleta dos dados informados às autoridades sanitárias deve se dar sob anonimato, quando não é possível identificar o indivíduo por trás da informação.
"O Ministério da Saúde reforça a recomendação sobre a necessidade de as autoridades de saúde e todo o corpo clínico e de apoio manterem o sigilo da identidade dos casos. Esta medida visa a evitar estigma social aos pacientes e resguardar o direito à inviolabilidade de sua privacidade. O não cumprimento dessa medida sujeita o infrator a ações administrativas e penais", disse a pasta.
E as figuras públicas também têm amparo na lei para confidencialidade de diagnóstico. Embora tenha sido divulgado o fato de que membros da comitiva presidencial que visitou os EUA tenham contraído Covid-19, não há determinação legal, por exemplo, que obrigue figuras públicas a manifestar o caso. Sob a ótica da legislação sobre essa questão, não há distinção entre pessoa pública ou privada.
"Gostando ou não, todos querem saber se o presidente foi infectado, mas não há amparo que o obrigue a isso. De um lado, há uma figura de autoridade e, de outro, há um cidadão, que ocupa o cargo de presidência da República, e que tem seus direitos preservados como qualquer outro indivíduo", diz a advogada. "A situação fica bastante contraditória porque as pessoas públicas, na verdade, devem satisfação à sociedade, e é como se a individualidade deles desaparecesse. Mas a obrigatoriedade, neste caso, se dá apenas com relação às autoridades sanitárias".
Do ponto de vista jurídico, nessa tensão entre os dois temas, tem maior peso o direito à privacidade.
O procurador do Estado de São Paulo José Luiz Souza de Moraes, que também é especialista em Direito Médico, entende que a notificação obrigatória é, de certa maneira, uma mitigação do direito ao sigilo. "Não existem direitos absolutos. E o problema é até que ponto pode haver essa mitigação. A ampla notificação incorre no fato de saber quem é a pessoa que está doente, onde ela mora, por exemplo", afirma.
Para ele, isso permite ao Estado, na figura das autoridades sanitárias, adotar medidas restritivas, impedindo em absoluto o direito de locomoção e outros direitos fundamentais do indivíduo.
Segundo o especialista, a ética médica também dá amparo à atitude do infectologista David Uip de não revelar se fez uso da cloroquina para o tratamento contra o coronavírus. Sobretudo, por se tratar de um medicamento que o uso é classificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como compassivo.
"Não acho que no caso do infectologista esse sigilo coloque em perigo outras pessoas, e entendo que ele não precisa ser flexibilizado justamente por isso", diz. "Se o tratamento que ele está realizando poderia ajudar outras pessoas é um assunto complexo. Mas temos que compreender que se trata de um infectologista e que, ao propagar isso, pode dar margem para que as pessoas copiem o tratamento, inclusive se automedicando".
O especialista salienta, no entanto, a eficácia do medicamento ainda está sendo estudada. "A segurança da droga é comprovada, mas para outros casos e com alguns graves efeitos colaterais. Isso diz respeito à toxidade do medicamento. Mas a eficácia dela ainda não é garantida, e para que seja, é preciso realizar testes, dentro de um padrão internacional, e isso demanda tempo".
Ameaça a terceiros
Por outro lado, quando o sigilo de diagnóstico de um indivíduo ameaça a vida de outras pessoas, cabe penalização. O fato de uma pessoa - pública ou privada - estar contaminada, usar o sigilo de diagnóstico, mas colocar em risco a integridade de saúde de outras pessoas pode render punição.
O Código Penal, neste caso, atrela a ação ao dolo, à intenção deliberada de difundir uma doença contagiosa. Há agravante quando se trata de profissional de saúde e quando houver contaminação de fato ou morte de terceiros.
"O Direito, que trabalha com provas, não consegue ingressar no interior da pessoa para saber de fato o que ela queria, mas julga de acordo com as provas que levam a crer se ele tinha intenção de matar ou não", diz o advogado. "Se alguém sabe que contraiu a doença e tem contato deliberado com outras pessoas, desejando ou apenas aceitando o resultado de contaminação de outras pessoas, em tese, entende-se como dolo".
Há quem argumente, inclusive, que saber da doença e não tomar as devidas cautelas poderia configurar como crime de genocídio. Segundo o especialista, no entanto, esse é um tema muito mais complexo.
Em seu artigo 131, o Código Penal estabelece, nestes casos, reclusão de até quatro anos para o indivíduo que "praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio".
"Se sei que estou contaminada e tenho contato com outras pessoas, sem o uso máscara, luva, estou admitindo risco de contaminar outras pessoas", afirma Mérces. "Há também casos de pessoas que no auge da sua inconformidade saem por aí contaminando outros, como aconteceu com muito paciente de soro positivo".
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