Ela pode ser concebida para descascar, tornear, filetar, desossar ou trinchar; ou idealizada para cortar pães, legumes ou carnes. A lâmina, polida e afiada manualmente, pode ter geometria do tipo hollow ou flat, a depender do corte que se deseja, enquanto a ponta pode ser pontiaguda ou mais rombuda, serrilhada ou de bico curvo. O cabo pode ser de madeira de lei, aço, couro prensado e até mesmo de chifre, e é fundamental que seja não apenas resistente, mas ergonômico de tal forma que a empunhadura seja perfeita; por fim, a guarda, ou virola, que liga a lâmina ao cabo, confere equilíbrio à faca, além de proteger a mão de quem a manuseia.
De colecionador
Alguns modelos são marcantes para Padilha:
Antiga
A faca mais antiga que Padilha tem em casa é de 1985. Trata-se um modelo de sobrevivência, inspirado naquela usada por Rambo no cinema. A faca foi feita toda em aço, com lâmina dupla e um dos gumes serrilhado. Interessados em um modelo igual teria de desembolsar R$ 800.
Única
Colecionadores procuram Padilha para encomendar modelos com um detalhe a mais que os torne exclusivo. A faca mais exótica já produzida foi pedido de um amigo. Um belo dia, o sujeito lhe entregou um baita dente de Narval, espécie de baleia cuja característica mais marcante é um enorme dente canino projetado a partir do lado esquerdo da mandíbula superior. Padilha foi incumbido de projetar uma espécie de canivete, de modo que a lâmina ficasse acomodada no interior do dente. Depois de 43 horas de trabalho, o modelo custou R$ 2,5 mil.
Especial
Em comemoração ao 70º aniversário, o cuteleiro resolveu produzir uma série especial de facas Bowie, lâmina com geometria hollow e cabo de chifre de cervo. Fez 12 exemplares numerados. O último era para ele, mas um grande amigo insistiu para que lhe vendesse. Cedeu. “Ele comprou e logo em seguida me entregou. Disse que era o seu presente pelo meu aniversário”, conta, emocionado.
Facas de produção industrial podem até fazer o mesmo trabalho, mas a satisfação de manusear uma faca artesanal é outra.
...ESPETO DE PAU
Embora admire uma boa faca e acompanhe uma ou outra novidade da cutelaria artesanal, Padilha não é um colecionador. O temperamento não permite. Pragmático, gosta do que é útil, e facas de coleção não são exatamente úteis. O apreço pelo que cumpre uma função no mundo, inclusive, é a razão pela qual ele prefere produzir facas mais tradicionais e evita encomendas de adagas e tantôs (modelo oriental conhecido por ser usado no ritual seppuku dos samurais), por exemplo.
O universo da cutelaria artesanal é tão amplo quanto a criatividade do artesão puder permitir e até um leigo entende que aquela faca Tramontina Edição Especial com cabo de policarbonato e lâmina colorida é fichinha perto de um exemplar artesanal. Para ter certeza, basta entrar na oficina de Hilton Padilha de Souza, 78 anos, possivelmente o mais antigo cuteleiro em atividade do Paraná. Ao longo dos últimos 26 anos, quando passou a se dedicar mais exclusivamente à cutelaria, seu Padilha produziu mais modelos do que pode lembrar e é possível encontrar relatos em fóruns on-line especializados de amantes da cutelaria que não puderam resistir aos encantos de suas peças.
Nascido em 1936, em Campo Grande (MS), seu Padilha soube que havia qualquer coisa que lhe atraía nas facas quando, aos 10 anos, enjambrou sua primeira peça a partir da lâmina velha e enferrujada de uma enxada. “Papai ficou contrariado, imagina, uma criança fazendo faca”, lembra. Não adiantou. Cansado de roçar na fazenda da família, aos 13 anos foi para a cidade viver com o padrinho, Avelino, um cuteleiro de mão cheia.
E foi com o tio que aprendeu a forjar e apurou o talento. Desde então, são mais de 60 anos fazendo facas na mão. “O padrinho era um perfeccionista. Ele não aceitava nada pior do que havia ensinado: eu tinha que fazer igual ou melhor”, conta. O esforço resultou no que considera a maior qualidade de um bom cuteleiro: o amplo conhecimento de ferramentaria. “O cuteleiro tem que dominar as ferramentas manuais. Aprender a utilizar todo esse material requer tempo e prática. Transformar uma barra de aço em uma faca de colecionador não é tão simples”, ensina o senhor baixinho, simpático e conversador.
Inspira e forja
A inspiração para a criação dos modelos que fabrica vem de fontes diversas. Padilha busca modelos em revistas especializadas, na internet e até mesmo em filmes. Entre as preferências, estão a Bowie, designação genérica de facas de defesa e caça originárias dos Estados Unidos do século XVIII; a Sorocabana, modelo tipicamente nacional, criado na época dos tropeiros (o legítimo “facão”), e um modelo batizado de Harpia, forjado a partir de um desenho do pintor paranaense Geraldo Leão, também ele um aficionado por cutelaria artesanal.
A maior parte dos modelos assinados por seu Padilha é feita com material importando, o que dificulta um pouco o trabalho uma vez que apenas uma loja em Curitiba fornece o K100, aço sueco de primeira, ou o 5160, especial para cutelaria. As horas dedicadas a cada modelo e a qualidade do acabamento valorizam o produto. Uma faca “Hilton Handmade” não sai por menos de R$ 300, as mais comuns – a média de preço é R$ 700.
“Muitos questionam o valor de uma faca artesanal. Já mandei muita gente ir comprar uma Tramontina. Facas de produção industrial podem até fazer o mesmo trabalho, mas a satisfação de manusear uma faca artesanal é outra”, diz. “É uma profissão que exige muita paciência, tanto no fazer cotidiano quanto no retorno financeiro. Às vezes demora anos até vender um modelo. Muita gente acaba desistindo da cutelaria”, completa, sério e convicto de que o talento que possui merece ser valorizado.
O que é que uma faca artesanal tem?
Uma boa faca artesanal é resultado da combinação de uma série de fatores que vai desde o aço escolhido (seu Padilha utiliza o K100, sueco, coisa fina) e a técnica de produção – há quem forje, há quem apenas desbaste e há quem combine as duas técnicas – até o tratamento térmico utilizado, sendo o principal a têmpera, processo no qual o aço é submetido a um choque térmico para endurecê-lo. “Técnica é domínio sobre as ferramentas, já a qualidade do acabamento é uma conquista; é aperfeiçoada com a prática”, sintetiza o cuteleiro.
Há, ainda, a cromagem, o polimento e o banho de níquel (para tornar a peça mais resistente à ferrugem). Se para um desentendido de facas tudo isso pode soar algo exagerado, para cuteleiros artesanais e colecionadores trata-se de detalhes de suma importância.
Em fóruns online sobre a arte, cuteleiros profissionais e amadores compartilham suas experiências e dissabores – frequentemente relacionados a erros de cálculo sobre a temperatura ideal da têmpera ou o polimento. Vale lembrar que uma vez que a peça sofra um atentado durante a produção, trabalho e material ficam inutilizáveis. Uma verdadeira tragédia na vida de um cuteleiro.
Ensino
A cutelaria artesanal é muito mais popular nos Estados Unidos e em alguns países europeus, como Alemanha e Espanha, mas o forjamento de facas começou mesmo na Índia, recapitula Padilha. No Brasil, apesar de não ser muito difundida, a arte conta com um séquito de devotos. Uma pesquisa rápida na internet e encontramos fóruns, blogs e sites especializados com fluxo intenso de informações, a maior parte delas compartilhada pelos próprios usuários.
A perpetuação da arte de fazer facas fica por conta desses adoradores, que buscam professores particulares e viabilizam oficinas para novos aprendizes. Pelo menos no Brasil, não há escolas oficiais de cutelaria. Uma lástima, na opinião de seu Padilha. “O ensino de cutelaria que se oferece hoje no Brasil está muito aquém do necessário. O aprendizado da cutelaria é prático, adquirido com a experiência. Não se aprende cutelaria em oficinas de uma semana”, desafia. (CP)
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