Ouça este conteúdo
Um substitutivo do projeto de lei 399/15, que tramita na Câmara, propõe liberar o plantio de maconha no Brasil, com a alegação principal de que é necessário baratear os custos dos medicamentos à base da Cannabis sativa no país. Mas, desde o último dia 10, quando o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou que pretende oferecer esses remédios gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), defensores da liberação do plantio perderam seu principal argumento.
O lobby pela liberação do plantio de maconha no Brasil começou a ganhar mais força depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou duas normativas – em dezembro de 2019 e fevereiro de 2020 – tornando possíveis a comercialização de produtos à base de Cannabis no Brasil. No caso do uso para fins medicinais, isso significa basicamente a comercialização de produtos com canabidiol, única das centenas de substâncias encontradas na maconha cuja eficácia para tratamentos médicos já se comprovou cientificamente.
Empresas brasileiras já podem importar os insumos para a produção de medicamentos com canabidiol, mas o cultivo da maconha dentro do país continua proibido. Segundo Roberto Lasserre, coordenador do Movimento Brasil Sem Drogas, somente cerca de 4 mil famílias no Brasil não têm outra alternativa além do canabidiol. Dada a pequena quantidade realmente necessária, o SUS teria condições de oferecer gratuitamente esses produtos para todos os brasileiros que precisam.
“O Ministério da Saúde, juntamente com a Anvisa, já estão providenciando o fornecimento gratuito do medicamento à base de Cannabis no Brasil. Ou seja, o argumento de que se plantaria maconha no Brasil para baratear os custos do remédio cai por terra. Se você fornece gratuitamente esses medicamentos que eles dizem que são caros – e alguns são caros, realmente –, se você entrega gratuitamente para essas 4 mil famílias que precisam através do SUS, você quebra a espinha dorsal desse principal argumento que utilizam a favor da plantação da maconha”, diz Lasserre.
Para ele, o lobby pelo plantio de maconha se apoia na justificativa do uso para fins medicinais para esconder outros interesses. “Em todos os países em que há hoje plantio de maconha para efeito recreativo – Uruguai foi assim, em estados americanos foi assim, no Canadá foi assim –, começaram com os argumentos e com a manipulação da cabeça das pessoas com essa questão da maconha medicinal. Quando se tirou a percepção de risco da maconha por conta da maconha medicinal, aí eles entraram com o principal objetivo, que é a maconha recreativa”, afirma.
Por que importar não é um problema, mas plantar maconha no Brasil, sim
Desde que a Anvisa liberou a importação de medicamentos com canabidiol, um dos argumentos dos defensores da liberação do plantio de maconha no Brasil é que seria um contrassenso permitir importar, mas não plantar. Lasserre afirma que não há contradição nisso, e usa o exemplo da morfina, derivada do ópio, para explicar seu argumento.
“O ópio não faz a morfina? Em algum lugar do mundo se planta ópio. E o Brasil não vai querer plantar ópio, mas importa o insumo básico para fabricar a morfina. A mesma coisa acontece com a Cannabis”, diz.
Na opinião de Lasserre, a discussão sobre a liberação do plantio é um problema de cada país. “O Brasil não pode intervir na independência de cada nação. Se alguns estados dos Estados Unidos e se uma nação como o Canadá já tomaram a decisão no sentido de plantar, e o Brasil não quer plantar, o Brasil vai buscar em outros países os insumos. Isso é natural.”
Mas, se o Brasil está importando os produtos à base da Cannabis de outros países, ele não estaria chancelando, ainda que indiretamente, o plantio? Para Lasserre, a circunstância de cada país também conta na decisão de liberar o cultivo. “Aqui no Brasil a gente acha que não tem capacidade de controle e não quer plantar maconha no Brasil”, afirma.
Por que o argumento de que o poder público tem de ser capaz de fiscalizar o plantio de maconha não se sustenta
Um dos grandes riscos da liberação do plantio da Cannabis no Brasil seria a dificuldade de fiscalização das plantações por parte do Estado. “A gente não consegue controlar nem bebida alcoólica para os jovens no Brasil, não consegue controlar a gasolina batizada que colocam no nosso carro… Como é que a gente vai controlar cada pé de maconha que é plantado?”, questiona Lasserre.
Contra essa ideia, defensores do substitutivo que tenta liberar o plantio de maconha no Brasil afirmam que o poder público não pode se reconhecer incapaz de fiscalizar as plantações de maconha. O deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), por exemplo, já disse em entrevista à Gazeta do Povo: “Se vai facilitar [o uso para fins recreativos] ou não, o Estado nosso não pode pecar por omissão. Nós temos órgãos que podem controlar.”
Para Lasserre, essa argumentação é frágil. “A própria polícia federal já disse que seria impossível, no Brasil, controlar o plantio de maconha, mesmo que seja para fins medicinais. Não é nem que o Estado não possa… O Estado já declarou que não tem essa competência, essa capacidade, hoje, com a mão de obra que ele tem, de controlar essa plantação de maconha no Brasil. Se não é legalizado e a gente tem tantos focos de plantação de maconha, imagina se tiver isso legalizado. Isso vai se expandir de uma maneira descontrolada”, alerta.
Por que o argumento de que pessoas certas doenças não têm outra opção é exagerado
Outro argumento muito comum dos defensores da liberação do plantio é que a maconha seria a única alternativa para muitos doentes, e que obrigar a importação seria deixá-los na mão. O argumento apela para a sensibilidade das pessoas, mas, segundo Lasserre, é bastante exagerado.
“Quem quer legalizar a maconha no Brasil diz que maconha serve para tudo: maconha cura câncer, maconha cura problemas psiquiátricos graves, problemas neurológicos graves… Isso tudo não é verdade”, diz Lasserre.
Segundo ele, só há comprovação científica da eficácia do canabidiol para dois tipos de doenças: a síndrome de Lennox-Gastaut e a síndrome de Dravet, que são dois tipos de epilepsia que ocorrem principalmente em crianças.
Ainda assim, mesmo entre pacientes que têm essas doenças, a grande maioria reage a outros medicamentos já existentes em farmácias. “Quando a pessoa não reage bem, aí sim se busca a alternativa da Cannabis. Isso corresponde a cerca de 5% [do total dos pacientes das duas doenças] – em torno de 4 mil famílias no Brasil. Essas realmente não têm [outra alternativa]”, afirma Lasserre. "Por isso mesmo, o Ministério da Saúde está dizendo: ‘É caro esse remédio? É caro, mas eu vou dar de graça para vocês".
O Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatra já emitiram pareceres limitando a administração de medicamentos à base de canabidiol aos casos em que não há outra alternativa para o paciente. “Como são em torno de 4 mil famílias, não tem a menor necessidade de plantar maconha no Brasil. Basta você importar esse pouco insumo necessário e fornecer gratuitamente para essas pessoas”, diz Lasserre.
O projeto que está em tramitação no Congresso conta com o apoio de alguns ruralistas, que enxergam a possibilidade de enriquecer com a comercialização da maconha e se aliaram a pessoas favoráveis ao uso recreativo da droga. Para Lasserre, o lobby que está sendo feito tem em vista “um mercado multibilionário”.
“Querem transformar o Brasil no maior exportador de maconha do mundo. Aqui tem uma terra boa, uma terra bem adaptada à maconha, e um clima muito bom para a maconha. Se você vai plantar maconha no Canadá, tem que plantar em locais fechados, com gasto de energia absurdo. Aqui no Brasil o clima é bom, a luz é boa, e a terra é boa.”