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O levantamento mais recente, de agosto de 2022, indica que existem atualmente 175 clínicas no país, sendo 33 em São Paulo, 12 no Rio de Janeiro, 11 em Belo Horizonte, 10 em Porto Alegre e oito e Curitiba. Em 2022, havia ao todo 284.232 embriões congelados no país, 67,2% deles na Região Sudeste.
Atualmente apenas resoluções da Anvisa e do Conselho Federal de Medicina colocam limites a prática, que possui muitas controvérsias éticas| Foto: Freepik

Um estudo recente sobre reprodução assistida mostrou que a Espanha, um dos principais exportadores de gametas, se aproveita da falta de legislação para vender material genético para o Brasil. A revista científica Mobilities apresentou um trabalho que refaz o caminho de óvulos do país europeu até o Brasil. A demanda por fertilização in vitro cresceu muito nos últimos anos, mas a legislação para regulamentar o mercado não acompanhou esse crescimento. Atualmente, apenas resoluções da Anvisa e do Conselho Federal de Medicina (CFM) colocam limites à prática, que possui muitas controvérsias éticas - desde a compra indevida de material humano até as consequências para os nascidos nessas circunstâncias.

“Este é um mercado que fatura R$ 800 milhões e não é regulamentado por lei específica”, aponta a juíza do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) Ana Claudia Brandão, presidente da Comissão de Biodireito e Bioética da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). “A importação acaba por suprir a demanda, já que coletar óvulos não é simples”, prossegue.

“A própria terminologia que se costuma usar, focada em expressões como material genético ou células, desvia a atenção das pessoas para um fato fundamental: os doadores são os pais e as mães biológicas dessas crianças, mesmo que legalmente não sejam reconhecidos como tal. É um vínculo muito forte, que não há como desconsiderar”, afirma Lenise Garcia, doutora em microbiologia e presidente do Movimento Brasil sem Aborto.

Os pesquisadores identificaram uma rede de agentes que garante o acesso às clínicas, muitas vezes aproveitando brechas na legislação do país de origem. A rastreabilidade do biomaterial humano da Europa ao Brasil é difícil, particularmente em relação aos óvulos.

“No caso estudado por nós, ficou claro que empresas sediadas na Espanha buscavam brechas legais para poder realizar o processo de exportação de gametas, já que a legislação local não permite a exportação desses ovócitos, somente sua circulação pela Europa ou envio para uma outra empresa espanhola sediada fora do seu país”, diz a pesquisa.

“Assim, como a exportação direta a partir da Espanha é difícil, os bancos encontraram brechas legais para fazer o envio.” A Espanha é o primeiro país da Europa e o terceiro do mundo em ciclos de reprodução assistida. No país, uma mulher pode receber até € 1.200, mais do que um salário-mínimo, para doar óvulos.

Óvulos tendem a ser usados por mulheres que optam por ter filhos mais velhas

A socióloga Rosana Machin, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coautora do estudo, descreve na publicação que a importação de ovócitos tem acontecido, por autorização da Anvisa, desde 2017, seguindo uma demanda crescente por essas células. “Apesar de a redução do número de filhos por mulher em idade reprodutiva ser ampla e geral, mulheres com mais anos de estudos e progressão na carreira têm menos filhos do que o desejado por dificuldades em conciliar o trabalho e a família, ou por buscarem um momento mais adequado para tê-los”.

Ao retardar o momento de ter filhos, acabam encontrando dificuldades para engravidar e precisam dispor de material genético de outras mulheres. “Ademais, também há uma demanda crescente de casais do mesmo sexo ou pessoas solteiras por reprodução assistida, desde a resolução do CFM em 2013, que os habilita a estes tratamentos.”

No Brasil, não há bancos de óvulos, embora a doação seja permitida em três situações. A doação altruística é quando uma mulher se submete aos procedimentos de extração e doa gametas de forma anônima. Há também a doação compartilhada, que acontece quando a receptora de óvulos paga pelo seu tratamento e o da doadora, sem que a identidade de ambas seja revelada. Nesse caso, a doadora tem o seu tratamento financiado pela receptora e, em contrapartida, cede a ela parte do material genético coletado. Ainda é permitida a doação de gametas por parentes de até quarto grau, desde que não exista consanguinidade.

Em nenhuma delas, em princípio, pode haver pagamento direto ou compensação para a doadora, mesmo o procedimento para extração sendo muito mais trabalhoso do que acontece para os doadores homens. “Esse contexto tem limitado a disponibilidade dessas células para tratamento reprodutivo no país”, afirma Machin. O cenário acaba por contribuir para que as clínicas de fertilidade busquem material genético em outros países e os revendam no país.

“Me parece claro que existe uma prática ilegal, não só na exportação, mas também no material que vem das doadoras brasileiras”, reforça Garcia. “É evidente que uma pessoa não se submete a um tratamento hormonal para ovular mais, e a uma cirurgia, para retirar esses óvulos, simplesmente de boa vontade. A não ser nos casos em que existe um parentesco próximo, é evidente que há envolvida uma transação ilegal.” De fato, o tratamento envolve o uso de hormônios, e a coleta é invasiva – a paciente precisa ser sedada. Procurado, o CFM não se manifestou.

Se os números de importações de sêmen e embriões oscilou entre aumento e queda de 2020 a 2023, os de óvulos só cresceram. De acordo com dados da Anvisa, em 2020 o Brasil importou 1.968 amostras de óvulos. Os dados – ainda parciais - de 2023 apontam para 2.789, um aumento considerável de 41%. Vale lembrar que o período contou com a pandemia da Covid-19, o que, além de prejudicar diversos serviços, deixou o cenário desfavorável para quem planejava uma gravidez por reprodução assistida.

Em fevereiro de 2023, a Anvisa colocou em vigor uma atualização do instrutivo do processo de importação de células e tecidos germinativos e embriões humanos, que datava de 2011. O documento detalha as práticas consideradas ideais para a importação. A norma criou a figura das empresas importadoras, que devem ser habilitadas pela autoridade sanitária brasileira. Antes, aplicava-se o modelo de importação individual, paciente por paciente. A mudança entrou em vigor em agosto deste ano e, neste momento somente uma companhia está autorizada a importar material.

Em outubro, a Criobrasil Serviços Ltda foi autorizada pela Anvisa para atuar com importação, transporte e distribuição de células germinativas, tecidos e embriões humanos no território brasileiro. Outras empresas solicitaram a licença e seus pedidos estão em análise, segundo a agência.

“É necessário comprovar que a empresa importadora tem competência, responsabilidade e infraestrutura técnica para garantir que o processo será realizado com qualidade e segurança”, informou a Anvisa, via assessoria de imprensa. “A Anvisa solicita que as empresas responsáveis pela importação de sêmen e óvulos cumpram rigorosamente com padrões de qualidade e segurança. Este processo inclui seleção e testagem das amostras, padronização do processamento e transporte e distribuição de maneira apropriada”.

Resolução do CFM não considera questões éticas 

O Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) da Anvisa monitora o número de clínicas em atividade no Brasil, assim como os indicadores a respeito da fertilização in vitro no país. O levantamento mais recente, de agosto de 2022, indica que existem atualmente 175 clínicas no país, sendo 33 em São Paulo, 12 no Rio de Janeiro, 11 em Belo Horizonte, 10 em Porto Alegre e oito e Curitiba. Em 2022, havia ao todo 284.232 embriões congelados no país, 67,2% deles na Região Sudeste.

Lenise Garcia considera que a última resolução do CFM não considera outras questões éticas graves. “Nesta resolução, o CFM passa a aceitar uma prática totalmente antiética, que é a troca na clínica de fertilização dos óvulos de pessoas mais pobres no lugar do pagamento de seu próprio tratamento de fertilização. Ou seja, uma pessoa que tem recursos paga pelo tratamento de uma pessoa mais pobre, com óvulos em boas condições, em troca de uns quantos desses ovos. É um escambo totalmente antiético”, avalia.

Lenise Garcia argumenta que o Brasil precisa urgentemente de uma legislação específica para a prática – uma lei que leve em conta as questões éticas da reprodução assistida, segundo ela. Mas, por se tratar de um tema polêmico, os projetos de lei que tramitam no Congresso não possuem avanços consideráveis.

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