No estado de São Paulo, os bandeirantes estão em todo lugar. Nomes como os de Fernão Dias, Paes Leme, Antônio Raposo Tavares e Anhanguera batizam rodovias, praças e avenidas. O governador do estado habita o Palácio dos Bandeirantes. Mas agora monumentos históricos viraram alvo de vandalismo e de uma tentativa forçada de revisionismo e apagamento de parte da história.
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Após o ataque recente à estátua de Borba Gato, a secretaria municipal da Cultura da capital paulista elaborou, por meio da Departamento de Patrimônio Histórico, uma lista de 40 monumentos da cidade que podem ser revistos. Oficialmente, o discurso é de que o objetivo seria promover uma ampla discussão com a sociedade sobre eles. Mas esse debate, até o momento, não tem sido tão transparente quanto seria necessário, dando voz prioritariamente para movimentos que defendem atos de vandalismo contra o patrimônio histórico e cultural da cidade. Procurada para explicar os critérios utilizados para formar a lista, inicialmente divulgada pelo jornal de Folha de S. Paulo, e os objetivos da prefeitura em relação a esses monumentos, a secretaria não se manifestou.
Mas a retirada das estátuas controversas seria essa a solução? Isaias Lobão Pereira Júnior, professor de história no Instituto Federal do Tocantins, avalia que esse não é o caminho. “Derrubar as estátuas não vai mudar, apagar ou redimir o passado. Esses monumentos podem ser usados como fonte de discussão e ensino”, explica. “Isso é um anacronismo, isto é, analisar os fatos e ideias do passado a partir da perspectiva presente”, avalia.
Ele salienta que é possível questionar monumentos por vias legais e sem vandalizar patrimônio público. “Há meios legais para que o assunto seja discutido e a retirada de estátuas sejam solicitadas por meios legais”, afirma o teólogo e historiador José Roberto de Souza, coordenador acadêmico, que leciona no Seminário Presbiteriano do Norte (SPN-Recife) e também é professor na Faculdade de Teologia Integrada (FATIN-PE).
Falta razoabilidade, sobra ignorância histórica
De todas essas possíveis descrições que possam ser aplicadas aos bandeirantes, a que parece predominar, neste momento, é a dos homens violentos, que representam a exploração de indígenas. Os ataques acontecem num momento em que figuras históricas têm sido questionadas por todo o Ocidente, da Califórnia à Inglaterra, passando pela Colômbia e chegando ao Brasil. Mas essas contestações nem sempre são razoáveis.
A imagem dos bandeirantes oscilou ao longo do tempo. Ainda no período colonial, os relatos dos jesuítas traçavam uma figura desabonadora dos exploradores que percorriam milhares de quilômetros território adentro. Posteriormente, em especial no século 20, passaram a ser vistos com personagens cruciais para garantir a formação do Brasil para além dos limites traçados entre Espanha e Portugal.
Mais recentemente, a historiografia vem identificando um outro aspecto da trajetória dos bandeirantes: muitos deles podem ser considerados vítimas da opressão contra judeus nas colônias portuguesas. Afinal, são comuns, entre eles, os casos de perseguição pela Inquisição. Eram forçados a esconder suas origens, sob pena de perder acesso à sociedade.
Raposo Tavares chegou a ser excomungado em 1633. Quando era adolescente, seu pai, João Lopes de Elvas, e sua madrasta, Maria da Costa, foram presos acusados de praticar judaísmo. Os anos de cadeia e a humilhação pública destruíram o patrimônio, a saúde e as conexões sociais do casal.
Borba Gato, um dos exemplos de bandeirante que precisou esconder as origens judaicas, nunca matou indígenas – diferentemente de Fernão Dias, que, de fato, ficou conhecido pela truculência durante as viagens de exploração. Ao contrário, viveu 18 anos escondido entre os mapaxós e chegou a ser respeitado como um cacique. O cenário, portanto, é mais sofisticado do que a divisão ingênua entre mocinhos e bandidos.
Na lista de monumentos - que a prefeitura de São Paulo agora considera questionáveis - estão outros nomes de figuras históricas complexas, que estão longe de representar o papel de colonizadores genocidas. É o caso do padre José de Anchieta.
O missionário de origem espanhola viveu entre indígenas. Não há registros de que tenha cometido atos violentos contra eles. Ao contrário, tentou, em pelo menos uma ocasião, salvar uma criança recém-nascida, que havia sido enterrada viva pela mãe em São Vicente (SP), em 1565.
Anchieta pertenceu a uma geração de jesuítas que acreditava sinceramente que o esforço de catequese poderia salvar as almas dos locais. A fim de interagir melhor com eles, fez de tudo para conhecer o idioma e escreveu uma gramática da língua tupi que se tornou obra de referência para religiosos, mas também para viajantes.
Cabral e Caxias
Pedro Álvares Cabral também está na lista da prefeitura de São Paulo. Mais uma vez, não há indício algum de que ele tenha atacado qualquer morador da terra que depois se chamaria Brasil. Considerado o descobridor do país, apesar das evidências de que outros viajantes europeus já frequentavam o litoral da região Nordeste, Cabral passou poucos dias na nova terra, de 22 de abril a 3 de maio de 1500. Da costa da Bahia, partiu para a Ásia. Voltou para Portugal em 1501. Seu péssimo desempenho na Índia o levou a morrer esquecido e recluso, em 1520.
Caso semelhante é o de Cristóvão Colombo, o descobridor das Américas que em nenhum momento propôs genocídio indígena – apenas cumpriu a missão que lhe foi encomendada, acreditando até a morte que havia chegado à Ásia, e não a um novo continente.
Entre figuras do passado do Brasil, a secretaria propõe reavaliar o Duque de Caxias. Não é a primeira vez que o militar, patrono do Exército e tradicionalmente reconhecido por seu papel crucial na vitória na Guerra do Paraguai, é contestado.
Em 2019, um desfile da escola de samba da Mangueira o representou pisoteando corpos. Seria uma crítica à atuação do militar em movimentos de contestação ao império brasileiro, da Balaiada à Guerra dos Farrapos.
Mas Caxias era um militar cumprindo ordens: reprimir movimentos rebeldes fazia parte de suas atividades. Quanto à fase final da Guerra do Paraguai, que se resumiu ao massacre de crianças e adolescentes que haviam sobrado no exército inimigo, ele já não comandava o esforço de guerra.
“Os radicais estão analisando a história de uma forma muito superficial. Não faz nenhum sentido atribuir esses conceitos a estes personagens. Não se pode negar que houve violência e escravização com a chegada dos europeus no continente americano. Entretanto, isso não quer dizer que os povos originários viviam no paraíso”, prossegue Lobão.
“O mundo dá voltas”, lembra Souza. “A ordem dos jesuítas, por exemplo, chegou a ser temporariamente extinta no século 18. Entre tantos motivos, se alegava que impedia o avanço e o desenvolvimento da modernidade. E hoje a maior autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana, ou seja, o Papa Francisco, pertence a ordem da Companhia de Jesus”.
Matarazzo e Tiradentes
Também está sendo repensada uma homenagem a Alexandre de Gusmão, considerado o pai da diplomacia brasileira, nascido em Santos em 1695 e maior responsável pelo acordo entre Portugal e Espanha que definiu as fronteiras do Brasil – ele conseguiu fazer valer o princípio segundo o qual cada país deveria permanecer com as áreas que já tivesse efetivamente ocupado.
Serão revisados também os monumentos ao poeta Luís de Camões, o empreendedor Francisco Matarazzo, o patriarca da independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Enquanto questiona as estátuas e os monumentos da cidade, a secretaria de cultura de São Paulo pretende instalar homenagens para cinco personalidades negras que têm algum tipo de relação com a capital. São eles: a escritora Carolina Maria de Jesus, o cantor Itamar Assumpção, o músico Geraldo Filme, a sambista Madrinha Eunice e o atleta olímpico Adhemar Ferreira da Silva.
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