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Guinada?

Quem é Felipe Santa Cruz e por que ele está sendo acusado de propagar ideologia na OAB

Santa Cruz foi eleito presidente da entidade em janeiro de 2019, com mandato até 2022. Publicamente, já afirmou ser "uma pessoa de centro" e defendeu a economia pela perspectiva liberal. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

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Em 2019, 66% do público ouvido pela FGV para o estudo a "Imagem do Judiciário Brasileiro" disse confiar na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em seu papel como entidade democrática na defesa das prerrogativas da classe e do Estado de Direito. A Ordem alcançou, na categoria empresas e organizações, o maior percentual de credibilidade, e ficou à frente de movimentos sociais (49%), sindicatos (35%) e partidos políticos (14%).

Para muitos interlocutores, a autonomia e apartidarismo históricos conferiram à entidade status de confiabilidade e prestígio ao longo dos últimos anos. Mas, no cenário atual, a percepção de parte da sociedade civil e de juristas é de que a Ordem, presidida pelo advogado Felipe Santa Cruz, de 48 anos, estaria perdendo parte de sua credibilidade. Essa gestão teria colaborado para uma guinada na OAB, tornando-a mais politizada e envolvida em questões que, originalmente, não lhe diriam respeito. Como, por exemplo, em embates frequentes com o presidente Jair Bolsonaro e simpatizantes, além de acenos institucionais a pautas consideradas de esquerda.

Em declaração ao jornal O Estado de S. Paulo neste sábado (6), Santa Cruz disse que vai convocar para a próxima terça-feira (9) uma reunião fora da pauta do conselho da OAB para tratar das ações do presidente Jair Bolsonaro na pandemia do novo coronavírus. Segundo ele, um possível processo de impeachment será debatido.

Orientação ideológica

Santa Cruz foi eleito presidente da entidade em janeiro de 2019, com mandato até 2022. Publicamente, já afirmou ser "uma pessoa de centro" e defendeu a economia pela perspectiva liberal. Ele é graduado pela PUC Rio e mestre em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Presidiu a OAB fluminense e foi candidato a vereador do município pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

"O Art. 44, inciso I, do Estatuto da OAB, que determina o que a entidade deve fazer, é muito claro: "A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade: I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas", lembra o advogado Paulo Faria, autor de dois pedidos de impeachment contra Santa Cruz por desrespeito ao Estatuto da OAB e politização da instituição.

"Entendo que a OAB é uma entidade apartidária, ou pelo menos, deveria ser […] não tem (ou pelo menos, não deveria) posicionamento político algum, seja de direita, esquerda, ou centro", diz ele. "A Ordem tem que focar na advocacia e na defesa dos interesses da classe, e não na defesa de interesses políticos e ideológicos". Ainda para Faria, diferentemente do atual momento, "gestões anteriores tratavam o cunho político de forma sutil, discreta".

O perigo apontado por alguns especialistas é a perda do real objeto da OAB e de sua credibilidade. "A OAB sempre foi dita e tida como porta-voz legítima da sociedade civil. Deslembro da OAB envolvida em pautas miúdas", afirma Hélio Gomes Coelho Júnior, professor de Direito do Trabalho na PUCPR, ex-presidente do Instituto dos Advogados do Paraná e do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil, ex-conselheiro da OAB-PR e do Conselho Federal da Ordem.

"A guinada que percebo é a mesma que se nota nas demais instituições da República que, em uma palavra, estão menores, muito aquém do que delas é esperado. Um olhar para trás, faz ver que o atual presidente nacional da OAB não tem o viço, a embocadura e a representatividade que o cargo, a advocacia e a sociedade esperavam, opina Coelho Júnior.

O cenário atual aponta para uma espécie de racha na cúpula da entidade. O Conselho Federal da Ordem, por exemplo, se divide frente a temas importantes, a ponto de hesitar em determinados posicionamentos e ações. São exemplos dessas situações a prisão do parlamentar Daniel Silveira, a prisão em segunda instância e o pagamento de honorários advocatícios. "A cisão interna é clara, pois a direção da OAB está dividida claramente entre presidente e secretário que têm a contraposição do vice-presidente, adjunto e tesoureiro", afirma Coelho Júnior.

"A OAB, antes de tudo, deve lembrar a sua finalidade, que é promover a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados; pugnar pela boa administração da justiça e aperfeiçoar a cultura e as instituições jurídicas, com extremada autonomia. E sempre jurar respeito à Constituição e seus valores pétreos. O senso médio do advogado comum, categoria a que pertenço, pede uma OAB mais intimista, endógena e, muito pontualmente, articular pelos interesses da sociedade, como exemplo, quando solicitou ao STF que assegure a aquisição de vacinas aos entes federados, pois estados, Distrito Federal e município têm autonomia na calamidade pública. Não lhe cabe o viés político apequenado", diz Coelho Júnior.

Para Paulo Sousa, advogado, doutor em Direito e professor de Direito Civil na Universidade de Brasília (UnB), por outro lado, a OAB não parece "politizada no sentido partidário ou eleitoral do termo. A defesa das instituições democráticas exige posicionamento firme e contundente da entidade e os governantes em geral usam esse posicionamento como fundamento para críticas desarrazoadas".

"As críticas fazem parte do jogo político, em especial em momentos de partidarização mais intensos, como ocorre agora. Elas, todavia, não têm fundamento. A OAB deve manter postura crítica e, ao mesmo tempo, vigilante na defesa da independência do Poder Judiciário, na manutenção das instituições democráticas e na execução das políticas públicas, especialmente em prol dos grupos vulneráveis. Me parece que é necessário ser intransigente na proteção das liberdades constitucionais, sobretudo quando elas são postas à prova pela militância política, à esquerda ou à direita, que apenas pretende manipular a opinião pública", afirma Sousa.

Santa Cruz e a assessoria da OAB foram procurados pela Gazeta do Povo, para serem ouvidos e manifestar opinião pessoal e institucional, mas disseram que não seria possível atender à solicitação de entrevista. Essa é a segunda vez que o presidente e a entidade se recusam a responder à reportagem. Na primeira tentativa, o jornal pediu um posicionamento sobre uma nota divulgada pela Ordem referente à prisão do deputado federal Daniel Silveira.

Embora em entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, Felipe Santa Cruz tenha afirmado repudiar a Lei de Segurança Nacional (LSN), defendeu a prisão do deputado Silveira, ordenada pelo STF com base no mesmo dispositivo. Nas redes, o presidente da OAB chamou o deputado de "notório fascista".

Histórico familiar, embate com o Executivo e conflito de interesses

A linha de atuação acentuada do atual presidente da OAB decorre, em grande parte, da bagagem histórica da família Santa Cruz. Seu pai, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desapareceu em 1974, após ter sido preso supostamente durante o carnaval no Rio, por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar. Na época, Santa Cruz era estudante de Direito, funcionário público do estado de São Paulo e militante do grupo radical de esquerda Ação Popular Marxista-Leninista (APML).

O episódio foi tema de palestra dada pelo então deputado Jair Bolsonaro na UFF, em 2011, ocasião na qual o ex-parlamentar afirmou que o pai de Santa Cruz teria morrido "bêbado" após pular carnaval. Iniciou-se, a partir de então, uma hostilidade pública entre os dois. Felipe Santa Cruz pediu a cassação de Bolsonaro duas vezes. A mais recente foi dirigida ao STF, por suposto crime de "apologia à tortura" da parte do atual presidente.

A animosidade se acalorou em 2018, quando Bolsonaro, após ter sido vítima de facada de Adélio Bispo, questionou o fato de a OAB, sob a chefia de Santa Cruz, ter impedido a quebra do sigilo telefônico do advogado do autor do crime.

Em seguida, o presidente voltou a fazer ataques pessoais à memória do pai de Santa Cruz: "Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro".

Mais tarde, Bolsonaro apresentou uma "nova versão" da morte do pai do presidente da OAB. "O pai do Santa Cruz integrava Ação Popular de Recife, o grupo mais sanguinário que tinha, e esse pessoal tinha ramificações pelo Brasil, no Rio de Janeiro. O pai dele veio para o Rio de Janeiro, e o pessoal da AP resolveu sumir com o pai do Santa Cruz. É essa a informação que eu tive na época", afirmou. "Não foram os militares que mataram, não. É muito fácil culpar os militares. Ele (Santa Cruz) está equivocado em acreditar em uma versão só dos fatos".

Entre respostas acaloradas e retratações, Santa Cruz afirmou que iria até "as últimas consequências" para proteger a memória do seu pai contra acusações como as proferidas por Bolsonaro. Também disse que já agiu em "defesa da memória de seu pai" sem colocar seus interesses pessoais acima dos da entidade. Em outros momentos, contudo, falou que "sempre preferiu deixar essa dor pessoal, de difícil compreensão para muitos, nas mãos de colegas que teriam maior isenção para tratar do tema, pois, pela falta de distanciamento, seria um péssimo advogado da causa".

"Com muito orgulho, sou filho de um herói que resistiu ao arbítrio", disse. "Em uma troca de mensagens que fizeram parte de uma discussão caluniosa e ofensiva sobre a memória de meu pai, me excedi e usei termos que não devem fazer parte de qualquer debate. Provocações injuriosas nunca devem ser respondidas de forma emocional, mas todos temos temas que nos são mais sensíveis. Peço desculpas a todos. Lamento o uso das redes sociais para esse fim e apaguei as declarações, que não espelham meu pensamento e minha costumeira calma".

"Aspirar mandato é legítimo. Rememorar a dor é possível. Mas, ao largo da representação da advocacia. Na condução da OAB não lhe é dado agir, por sentimentos e convicções próprios", opinou Coelho Júnior.

Manifestações quentes e bate-boca

Santa Cruz também é crítico das ações do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, a quem chamou de "chefe de quadrilha" e afirmou que os políticos "perderam a condução do país para uma Vara de Curitiba", referindo-se à Operação Lava Jato. O ministro Gilmar Mendes também já foi alvo de Santa Cruz: "passa do ponto na paixão que ele expressa".

Nas redes sociais, o presidente da OAB trocou ofensas públicas com Luciana Pires, a advogada que representa Flávio Bolsonaro no caso "rachadinha": "Não há qualquer chance de essa advogada de porta de cadeia entrar em uma lista da OAB. Gente desqualificada não entra na lista", escreveu, em seu perfil no Twitter.

Luciana respondeu que "quando o presidente de uma instituição ataca uma colega de forma irresponsável e gratuita, demonstrando um desequilíbrio emocional incompatível com o cargo que exerce, e além disso se comporta como líder mafioso, dizendo abertamente que é ele quem controla quem entra ou não na lista de candidatos do que quer que seja da OAB, já passou da hora de repensar a permanência desse senhor na liderança da respeitável instituição à qual pertenço".

Sobre o caso, Faria comenta: "perdeu-se a vergonha por completo. O cunho político-ideológico do atual presidente é tão notório como dois e dois são quatro". Outro episódio é lembrado pelo jurista: "no caso, por exemplo, da prisão do Daniel Silveira, em vez de se pronunciar como presidente da OAB para defender a Constituição Federal, que foi rasgada, pela milésima vez, o atual presidente da Ordem foi em suas redes sociais classificar o deputado federal Daniel Silveira como "fascista". Esse não é o papel do presidente da OAB".

Nome citado em delação, insatisfação e pedido de impeachment

Em setembro de 2020, o nome de Felipe Santa Cruz foi citado em uma delação do empresário Orlando Diniz, ex-presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Rio (Fecomercio-RJ). Segundo informação exclusiva do CNN Brasil, Santa Cruz teria solicitado a Diniz, em 2014, dinheiro "em espécie" para a campanha à reeleição da OAB-RJ.

Somada a outros episódios, a situação provocou indignação por parte da classe, que pediu o impeachment de Santa Cruz. Existem pelo menos quatro ações que pedem seu afastamento. Leia no fim da matéria.

O cenário também motivou a criação de movimentos como o Advogados do Brasil. "O MABr conta com mais de 10 mil advogados e é, sem sobras de dúvidas, o maior movimento de advogados do Brasil e que faz sistemática oposição à atual gestão", explica Faria. "Nossas pautas são as eleições direitas para a presidência da OAB nacional, como acontece com as seccionais, prestação de contas obrigatória e transparência na gestão, respeito às prerrogativas dos advogados, que foram esquecidas por essa gestão".

Eleições indiretas e "batalha desigual"

Um dos caminhos apontados pelas fontes ouvidas pela reportagem para melhorar o cenário é alterar a maneira como são realizadas as eleições para o cargo de presidente da Ordem, que hoje é indireta. "A submissão da advocacia a tal sistema é mesmo desrespeitosa", defende Coelho Júnior. "São 27 seccionais, uma por estado mais Distrito Federal, que indicam 03 conselheiros, que formam então um colégio de 81 membros, que são os ungidos à escolha do presidente".

"Qual a razão para não se oxigenar a instituição com as elementares regras democráticas, que ela própria tanto preza e recomenda a todas as esferas públicas e privadas mas, efetivamente, não as adota? Minha percepção: o sistema é impermeável à mudança, pois contenta e sustenta quem nele está e que, por sua vez, a conta gotas, fala na participação por cotas de gênero, raça e quejandos, que são temas menores ante a grandeza dos apontados", comenta Coelho Júnior.

Essa também é uma das pautas do MABr. Para Faria, que está entre os representantes do movimento, trata-se de "uma batalha desigual" em que o cargo da presidência é "blindado" pelos conselheiros, capazes de impedir, por exemplo, o devido andamento dos pedidos de impeachment.

"A principal mudança que percebemos foi a conscientização dos advogados de que precisamos de eleições diretas para a presidência do Conselho Federal. E isso se faz com luta, inclusive, dentro do Congresso, onde também estamos atuando. A luta é árdua e não desistiremos".

Poder e influência: trampolim político e possível candidatura

Para muitos interlocutores, a visibilidade e influência permitidas pelo cargo de chefia da Ordem são amplamente visadas por juristas, pois podem servir de trampolim político. No caso de Santa Cruz, há quem diga que como pano de fundo de sua linha de atuação existe o interesse em galgar apoio para uma possível candidatura política em 2022. O próprio advogado não descarta a possibilidade.

Ele tentou entrar na política em 2004 como candidato a vereador do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Já se aproximou de siglas como PMDB. Santa Cruz também estaria sendo sondado por partidos como o PSDB para o pleito de 2022.

Leia três dos quatro pedidos de impeachment contra Santa Cruz:

Correção

Diferentemente do que estava escrito na primeira versão desta matéria, os motivos alegados nos dois pedidos de impeachment impetrados pelo advogado Paulo Faria contra Felipe Santa Cruz não são por "supostos casos de corrupção", mas sim "por desrespeito ao Estatuto da OAB e politização da instituição".

Corrigido em 08/03/2021 às 12:30

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