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Todos os anos, cerca de um milhão de brasileiros integram uma estatística gravada à flor da pele – a das vítimas de queimaduras. Não é o número mais dramático – como o da aids, com 18,2 casos a cada 100 mil habitantes – nem o que mais mobiliza a mídia e a opinião pública, como o dos mortos e feridos no trânsito, contabilizando 80 mortes e mil feridos por dia. Mais da metade das vítimas das altas temperaturas dirá que "se pelou" ou "levou uma sapecada" e disfarçará a cicatriz com gola alta ou coisa que valha. Já a outra parte vai ter de começar do zero, integrando-se a um grupo que, de tão particular, desafia sociologias, matemáticas e a própria medicina. São os queimados.

"O que se vê, aqui, não é nada bonito", avisa o médico Luiz Henrique Calomeno, 48 anos, chefe do serviço de cirurgia plástica e queimados do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba (HUEC), um centro de referência nacional, com 37 anos de atividade, 10.800 atendimentos ambulatoriais em 2005 e sem concorrência na redondeza. Calomeno, contudo, não se refere apenas à aparência desoladora da maioria dos 200 pacientes que a cada ano ultrapassam a porta do ambulatório ou do pronto-socorro e praticamente se mudam para o centro cirúrgico do Evangélico – a permanência costuma chegar a seis meses e exige longo tratamento pós-hospitalar. O especialista fala do que se esconde por debaixo das escamações de terceiro grau, ataduras de cima a baixo e gritos de dor que fazem eco na ala inteira. Queimadura, no Brasil, é problema com classe social registrada em cartório. Os doentes são esmagadoramente pobres.

Em tese, todos estão sujeitos aos perigos do fogo. De tão mágica, a palavra "queimado" parece ter poder de colocar qualquer um no lugar da vítima. De tão presente, virou "força de expressão": mão no fogo, fogo na roupa, prova de fogo. Mas são as crianças que moram em casas minúsculas as mais sujeitas a ficar em carne viva – principalmente quando as mães as deixam sozinhas para trabalhar fora. Os pequenos entre 3 e 12 anos respondem por 33% dos casos, de acordo com a Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). Estima-se que 45 mil crianças se acidentam com álcool por ano no Brasil – muitas depois de brincadeirinhas. Os menos endinheirados são os que acendem liquinhos, trabalham no fundo do quintal ou são quase suicidas – como os motoboys (ferimentos no escapamento de motocicleta já são a sétima causa na emergência do Evangélico).

Por extensão, a "ala dos queimados" tem menos acesso à informação. Às vezes, informações mínimas, como as sobre a bomba que habita a despensa, o álcool líquido, por exemplo. De tão cultuado por seus poderes na faxina, de um ano para cá voltou a pontificar como causa de acidentes. Em 2002, com a proibição de venda das embalagens de álcool em supermercado, parte da batalha parecia ganha. Houve diminuição de 60% de tragédias com o produto, salvando em primeiro, segundo e terceiro grau 90 mil adultos e 27 mil crianças. Em 2004, o álcool era responsável por 28% dos queimados do HUEC. Ano passado, voltou a ser o principal motivo de internamento. Por causa dele, 150 mil brasileiros se queimam a cada ano, número igual ao dos maltratados pela violência urbana no país. Semelhante ao das vítimas do tsunami.

Tanto quanto uma mão de álcool na vidraça, as situações relacionadas aos queimados são domésticas. Cerca de 60% dos acidentes ocorrem no endereço da vítima (80% deles na cozinha), o que explica por que acabam provocando surto de amnésia nas políticas públicas. É como se fosse um preço pago pelo descuido da porta para dentro. A turma da saúde leva o troco – médicos, enfermeiros, psicólogos e demais agentes do setor comumente se sentem anônimos nos poucos e dispersos 39 centros nacionais de atendimento dotado de condições de atender o chamado "grande e médio queimado". "Acho que ninguém imagina como é trabalhar nessa área", diz Calomeno. "O que se vê aqui é a ponta de um iceberg", reforça o cirurgião plástico Alberto Prestes, da equipe do Evangélico.

Boa parte do que se sabe sobre a situação de queimados no Brasil é empírica, um saber adquirido nos corredores de hospital. Fatalidade acaba sendo a palavra usada para explicar o churrasco que acabou em tragédia. Já para o médico Edmar Maciel, atual presidente da SBQ, atualmente com sede em Fortaleza, melhor falar em campanhas de prevenção do que em rasteira do destino. "Nunca o governo federal realizou uma campanha sobre queimaduras", lamenta.

Motivos? O mundo dos queimados não sofre grandes saltos quantitativos. É estável – o que deveria ser um incômodo. De 2003 a 2005, os internamentos custeados pelo Sistema Único da Saúde (SUS), em todo o Brasil, estacionaram na casa dos 22 mil pacientes, a custos também sem variação, de R$ 25 milhões ao ano (cada dia de internação fica entre R$ 1.200 e R$ 1.500). No ranking dos estados com mais queimados, destacam-se os mais populosos, os com mais bolsões de pobreza urbana e com maior atividade agrícola – São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Paraná, nessa ordem. Bastam alguns minutos do setor de queimados de um hospital para se convencer de que não há bonança. Essas estatísticas não zeram no final do ano. E quando zeram, são uma cicatriz em manga da camisa.

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