Um estudo sobre insegurança alimentar no Brasil publicado no início de junho pela rede de pesquisadores Pensann (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) em parceria com seis entidades e ONGs afirmou que o Brasil tem, atualmente, 33,1 milhões de pessoas passando fome. A pesquisa tem sido criticada por uma série de aspectos duvidosos de seu relatório, que sugerem uso político dos dados apresentados.
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A controvérsia começa na própria falta de clareza do que os autores definem como fome. O número de 33,1 milhões se refere ao que está definido com o termo técnico “insegurança alimentar grave” na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), usada desde 2004 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e aplicada no estudo em questão. No entanto, ao contrário da Pensann, o IBGE não costuma usar a classificação de “insegurança alimentar grave” como sinônimo de fome.
Em 2020, André Martins, gerente da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, definiu a fome como “situação em que pelo menos alguém ficou o dia inteiro sem comer um alimento”. Já a insegurança alimentar grave, para o especialista, é uma restrição de acesso a alimentos “com uma redução da quantidade consumida para todos os moradores”. Em domicílios com insegurança alimentar grave, “pode ter ocorrido a fome”, afirmou Martins, mas um não é sinônimo do outro.
Na literatura sobre insegurança alimentar, não há uma conceituação padrão da fome, e essa indefinição do termo tem dado brecha para que a estatística dos 33,1 milhões seja usada em todo tipo de discurso. No próprio site do estudo, há uma informação enganosa relacionada ao número: “em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer”, diz a página.
A expressão “sem ter o que comer” pode causar a impressão de privação total de alimentos, o que raramente é o caso, mesmo nas situações de insegurança alimentar grave. Curiosamente, a mesma expressão de efeito (“sem ter o que comer”) acabou subsidiando uma publicação também enganosa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato à Presidência pelo PT, que tuitou: “O Brasil tem hoje 33 milhões de pessoas que vão dormir todos os dias sem ter o que comer”.
Alguns veículos de imprensa também reproduziram o discurso. O Estadão, por exemplo, em seu editorial de 9 de junho, afirmou que “são 33,1 milhões de brasileiros que dormem e acordam todos os dias sabendo que não terão o que comer”.
Relatório do estudo tem vários vestígios de politização
A pesquisa que chegou à estatística dos 33,1 milhões – isto é, 15,5% da população brasileira – é a segunda edição do “VIGISAN - Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”. Na primeira edição, publicada no começo de 2021, o número de brasileiros na mesma situação era de 19,1 milhões, ou seja, 9% da população.
Como mostra o gráfico acima, que faz parte do relatório, os dados são apresentados pela Pensann como uma continuidade de estudos do IBGE feitos desde 2004 sobre a situação alimentar do brasileiro. De fato, a metodologia descrita na pesquisa foi semelhante à que o IBGE usou nas últimas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Por isso, segundo especialistas consultados pela Gazeta do Povo, não há problema em que os dados obtidos pelo Instituto Vox Populi, que aplicou o questionário da EBIA em parceria com a Pensann, sejam comparados com os do IBGE. O que tem claro viés político, segundo eles, é a interpretação que o relatório do VIGISAN faz dos dados.
O estudo fala, por exemplo, que há uma “onda deformadora do Estado, em curso desde 2016”. Afirma ainda que os pobres foram “deserdados por um Estado gerenciado sob a doutrina neoliberal e sob a obsessão pelo equilíbrio fiscal e controle de gastos”. Também diz que houve um “desmonte de políticas públicas”, sem especificar quais políticas relacionadas à fome foram desmanteladas e sem mostrar a correlação dos dados com isso.
“Teria que mostrar o elo causal entre uma política pública específica e a variação que eles observaram nos dados, e isso não é simples de se fazer”, diz Lucas Azambuja, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais de Belo Horizonte (Ibmec-BH). “Eles fazem uma ilação com relação às políticas públicas. Mas a gente tem um contexto de pandemia, em que boa parte da população perdeu o seu emprego. Aquelas pessoas que trabalhavam com a economia informal deixaram de ter a sua renda, que já era baixa. Até as pessoas que pediam na rua ficaram sem recursos, porque as outras pessoas deixaram de circular. Houve toda uma estrutura que prejudicou as pessoas mais vulneráveis”, afirma.
Para Fernando Schüler, doutor em Filosofia e mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há sinais evidentes de politização no texto do relatório. “A pior forma de tratar o tema da pobreza é politizar a questão. Muitos governos têm responsabilidade por este estado de coisas. Na crise de 2015 e 2016, mais de quatro milhões de pessoas cruzaram para baixo da linha da pobreza extrema em apenas três anos. Depois houve um outro salto, durante a pandemia. O que o Brasil precisa é combinar políticas de crescimento econômico, via ganhos de produtividade, e programas estruturais de combate à pobreza que transcendam este ou aquele governo”, argumenta.
Chama a atenção no texto do relatório a pouca relevância que se dá às restrições de circulação impostas durante a pandemia como causa do aumento da pobreza. Desde 2020, vários economistas e sociólogos fizeram alertas sobre as potenciais consequências desastrosas dos excessos nas políticas de restrição à circulação, os chamados lockdowns.
"Eu especulo que a intenção do relatório é realmente subsidiar certo discurso político no campo da oposição ao governo atual. Não se vão colocar em primeiro plano as reais causas do problema, que são conhecidas. A gente enfrentou aquela situação escolhendo a questão do lockdown. Isso teve consequências, que estão chegando de maneira mais evidente agora”, diz Azambuja.
“Já se imaginava que isso ia acontecer lá no início, quando anunciaram as primeiras medidas de distanciamento social, de fechamento do comércio e das atividades. Já se sabia que isso ia impactar. E isso não se retoma do dia para a noite. Várias pessoas tiveram a sua vida desestruturada por causa dessas medidas. A pessoa tende a demorar, por exemplo, para conseguir um emprego novo ou pagar uma dívida que acabou assumindo em razão das dificuldades daquele momento”, acrescenta.
Segundo ele, em uma situação como a da pandemia, em que muitos brasileiros simplesmente deixaram de trabalhar, os mecanismos de transferência de renda são a principal política pública para resolver a situação emergencial. “E eles não cessaram. Muito pelo contrário, o auxílio foi ampliado”, diz.
ONGs e entidades que apoiaram a pesquisa têm viés de esquerda
Entre as ONGs e entidades que apoiaram a pesquisa realizada pela Pensann, algumas têm claro viés esquerdista e costumam atacar diretamente o presidente Jair Bolsonaro (PL) em declarações oficiais, o que põe em dúvida a imparcialidade do estudo. A Oxfam Brasil, por exemplo, publicou em seu site oficial no dia 10 de junho uma nota com o título: “Bolsonaro despreza fome de brasileiros na Cúpula das Américas”.
“É estarrecedor ver um presidente da República brasileiro afirmar em uma reunião de líderes internacionais, sem pudor algum, que o Brasil alimenta 1 bilhão de pessoas pelo mundo e evitou uma crise alimentar global, na semana em que um relatório de pesquisadores da área de segurança alimentar e nutricional revela que há mais de 33 milhões de pessoas passando fome no país. Foi o que aconteceu nesta sexta-feira (10/6), na Cúpula das Américas, realizada em Los Angeles (EUA)”, diz a organização.
Em abril, a Oxfam e outra ONG parceira do estudo da Pensann, a Actionaid, assinaram uma carta contra o indulto de Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), afirmando que “o chefe do Executivo intensifica as afrontas e o tensionamento junto às instituições, em especial o STF, em mais um passo no processo de erosão da nossa democracia”.
Silvio Caccia Bava, presidente do conselho administrativo da Actionaid, é comentarista da TVT, emissora de rádio mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Entre suas últimas falas, Caccia Bava já disse que o “governo Bolsonaro abriu Amazônia para predação”, que sob Bolsonaro “o Brasil se torna cada vez mais um pária no mundo”, que o presidente “está tentando uma ruptura institucional”, e que “Lula se consolida como a alternativa para sairmos da crise”.
Para Lucas Azambuja, as organizações que apoiaram o estudo têm viés político claro, e isso se reflete no texto do relatório. "O jogo da política, especialmente em um ano eleitoral, é um jogo de quem consegue transferir a culpa para quem, quem consegue fazer mais acusações. Esse vai ser o jogo da campanha política, e essas são organizações que têm claras vinculações políticas. É por isso que elas acabam assumindo essa retórica de responsabilizar pelo fenômeno da fome o desmonte de políticas públicas. Aquilo que eles chamam de desmonte é, basicamente, o fato de que as políticas públicas hoje são encaminhadas por uma outra nuvem política que não a daqueles que produziram o relatório”, afirma.
Nas redes sociais, defensores do governo reagem
Além de Lula, vários políticos e formadores de opinião de esquerda usaram o discurso dos “33 milhões” como munição contra o governo Bolsonaro nas redes sociais. Apoiadores do atual presidente responderam com apelos para que a esquerda refresque a memória sobre o início da pandemia, quando os alertas sobre os riscos do lockdown para a economia brasileira eram frequentes.
O próprio presidente falou sobre o assunto em entrevista à CBN Recife na última segunda-feira (13). “O preço dos produtos da cesta básica subiu bastante. Agora, como é que começou isso daí? Começou com a pandemia, mas não por culpa do vírus, por culpa dos governadores”, disse Bolsonaro.
Entre as críticas ao estudo, alguns usuários de redes sociais apontaram que os pesquisadores do Pensann e do Instituto Vox Populi entrevistaram mais pessoas do Nordeste e do Norte, onde a situação de pobreza é mais grave, do que do Sudeste e do Sul.
Uma das responsáveis pela pesquisa da Pensann, a médica epidemiologista Ana Maria Segall explica que o tipo de amostragem usado no estudo é idêntico ao do IBGE, e que mais pessoas do Nordeste e do Norte são entrevistadas porque a população dessas regiões é mais dispersa, e não por causa de um viés da pesquisa. Depois das entrevistas, corrigem-se os dados para que se represente fielmente a população brasileira. “Os municípios são muito pequenos. Como a população é muito menor, você precisa de mais gente para conseguir o número de pessoas que são necessárias para dar visibilidade ao dado que está sendo pesquisado”, diz.
Segundo ela, toda a coleta de dados feita pelos funcionários do Instituto Vox Populi seguiu o padrão do IBGE. “A POF e a PNAD, do IBGE, usam o que se chama de ‘amostra-mestra’. O IBGE tem uma forma de coletar informações, de fazer uma amostra, que é usada em todas as suas pesquisas. Depois, você usa um método para expandir essa amostra e torná-la representativa da população. Com isso, você pode dizer qual é o volume daquela população que está na condição que está sendo apontada”, afirma Segall.
Raphael Nishimura, diretor de Operações de Amostragem em Pesquisas de Levantamento da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, diz que a ideia de que entrevistar mais pessoas de determinada população indique viés da pesquisa é “um erro de concepção bastante comum em amostragem”, e que a opção por uma amostra maior do Nordeste e do Norte só serve para tornar os dados mais precisos. “Subpopulações, como região, não precisam ser selecionadas proporcionalmente na amostra, desde que elas sejam devidamente ajustadas na análise por meio de ponderação. Inclusive, a maiorias das pesquisas acaba fazendo uma sobreamostragem para algum tipo de subpopulação de interesse. Isso é feito justamente para se obter estimativas com melhor precisão para essas subpopulações do que poderiam ser obtidas caso fossem selecionadas em quantidade proporcional à população”, explica.
Embora seja politicamente tendencioso em seu relatório, o estudo da Pensann traz dados que não deixam de ser preocupantes do ponto de vista social. Em comparação com o estudo publicado pela rede em 2021, o aumento do número de pessoas com insegurança alimentar grave é expressivo: os que se encontram nessa situação são agora 15,5% da população brasileira, contra 9% na pesquisa anterior. “Há duas questões muito importantes: o volume de pessoas em situação de fome no Brasil e a velocidade da piora. Houve uma aceleração muito grande entre o final de 2020 e o início de 2022”, diz Segall.
O Ministério da Cidadania foi procurado diversas vezes ao longo da última semana pela reportagem da Gazeta do Povo para comentar a pesquisa, mas não se manifestou.
O IBGE também foi procurado pela reportagem, mas afirmou que "não comenta estudos elaborados por outras instituições", mesmo que sejam parcialmente baseados nos microdados do instituto.
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