Criança sem fome não é sinônimo de criança bem alimentada. No mundo, segundo dados do Unicef e da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 2 bilhões de pessoas de classes altas e baixas sofrem com a falta de nutrientes essenciais, como vitamina A, zinco, ferro e iodo. Por não ser detectada clinicamente, essa deficiência é chamada de fome oculta.Mesmo com um consumo adequado de calorias, grande parte da população está longe de ser considerada bem nutrida, por isso este mal pode passar despercebido pelos pais e deixar sequelas graves em crianças. "As pessoas se alimentam adequadamente, mas não se nutrem. Assim, o estômago é enganado, mas as células, não", diz a nutricionista funcional Flávia Sguario.
Mulheres e crianças compõem o grupo mais atingido pela falta de nutrientes essenciais. Nos pequenos, a carência nutricional acontece principalmente devido a variações na alimentação. "Na fase lactente [até os dois anos de idade], uma criança tem que consumir porções ricas em ferro em alimentos de origem animal, como carnes. Geralmente há a recusa pela dificuldade na mastigação e pela variação de apetite comum após o primeiro ano de vida", explica a gastropediatra e nutróloga Junaura Barreto, membro do departamento científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). No caso das mulheres, a perda de ferro ocorre na menstruação e, nas gestantes, pelo aumento da demanda do mineral pelo feto e depois no período de lactação.
Em casos críticos, a ausência de vitamina A pode levar à cegueira ainda na infância. Estudos do Ministério da Saúde revelam que este problema atinge mais fortemente as populações urbanas. No Brasil, a carência de vitamina A afeta 17,4% das crianças e 12,3% das mulheres.
Sem zinco, a vulnerabilidade a infecções aumenta e, sem iodo, a criança pode apresentar surdo-mudez. A deficiência desses nutrientes pode ser contida com o diagnóstico médico correto seguido de tratamento e por meio de políticas públicas de biofortificação de alimentos como a iodação do sal feita no Brasil na década de 1950 que livrou o país do bócio.
Anemia no topo
A falta de ferro é considerada o problema nutricional mais sério do país, segundo dados do Ministério da Saúde. Esta carência afeta todas as regiões do Brasil: metade das crianças brasileiras menores de cinco anos sofre de anemia ferropriva, assim como de 15% a 30% das gestantes. "Sem ferro, a anemia avança e compromete a saúde de mães e bebês antes e depois do parto: a criança com este problema tem baixo rendimento escolar, menor coeficiente de inteligência e, quando adulto, vai produzir menos", explica Junaura.
Mesmo uma mesa farta em opções pode ser pobre em nutrientes necessários, por isso a fome oculta atinge tanto ricos quanto pobres e seus efeitos socioeconômicos são sentidos na saúde pública e na capacidade produtiva dos países onde as populações são mais afetadas. "A nutrição é fundamental para que um indivíduo desenvolva todas as suas capacidades e explore seu potencial produtivo. Nos estudos da economia, a alimentação faz parte do capital humano, pois ajuda no seu desenvolvimento. Quando a nutrição é pobre, isto não afeta só a capacidade cognitiva das crianças, mas também a capacidade de trabalho dos adultos", explica o professor de Economia da UFPR Luciano Nakabashi.
Pastoral da Criança destaca importância de melhorar a alimentação
A forma mais efetiva de melhorar o aspecto nutricional da refeição da população infantil brasileira está na propagação de informações. É desse modo que a Pastoral da Criança age para reverter o quadro de desnutrição de micronutrientes.
"Não fornecemos alimentos. Fornecemos informações sobre aspectos básicos da alimentação das crianças. Isto não exige alto investimento. O importante é fazer com que conhecimento de qualidade chegue até as mães, que em muitos casos têm baixa escolaridade e desconhecem as demandas de seus filhos em cada fase do desenvolvimento", explica Caroline Dalabona, nutricionista da coordenação nacional da Pastoral da Criança.
Disseminação
Desde 2009, o contato de líderes da Pastoral com famílias carentes ajuda na disseminação do programa Alimentação e Hortas Caseiras, cujo objetivo é ensinar a família a aproveitar pequenos espaços domiciliares para o cultivo de vegetais e utilizar a produção de forma integral na alimentação, combatendo deficiências nutricionais relevantes da população brasileira.
Fortificação
Mais vitamina no cultivo dos alimentos
Além de mudanças nos hábitos alimentares, a bioengenharia também pode ajudar a reduzir o número de pessoas atingidas pela fome oculta, sejam elas crianças ou adultos. Isso pode ser feito pela biofortificação dos alimentos mais consumidos no país.
Segundo Marília Nutti, pesquisadora da Embrapa e líder da rede de biofortificação do Brasil (BioFort), o objetivo da rede que reúne 150 pesquisadores e técnicos de 11 unidades da Embrapa e de universidades brasileiras é impactar efetivamente a saúde dos brasileiros que precisam de mais nutrientes.
A rede se dedica ao melhoramento genético de alimentos como arroz, feijão, milho, mandioca, trigo, abóbora e batata doce, enriquecendo-os com micronutrientes essenciais. Para isto, os cientistas do Brasil contam com parceiros internacionais, como a Fundação Bill e Melinda Gates, e utilizam o fundo de pesquisa Embrapa-Monsanto. O orçamento disponível é de R$ 1,7 milhão.
Por meio do BioFort, o cultivo da mandioca, do milho e da batata-doce foi reforçado com vitamina A. "A pesquisa em biofortificação tem sido destinada principalmente à Região Nordeste, que tem a população mais afetada pela fome oculta", diz Marília. "Não temos sementes suficientes para serem distribuídas para o Brasil todo, então fazemos convênios com prefeituras que solicitam as sementes e as distribuem para seus agricultores. O cultivo é feito principalmente na agricultura familiar", explica. Maranhão, Sergipe e Minas Gerais já fazem parte da rede de biofortificação. Em 2012, os pesquisadores farão um levantamento do impacto do consumo dos alimentos melhorados geneticamente na saúde das populações.