Com a troca de comando no governo, o Ministério da Saúde tem dado sinais de que pode rever medidas sobre o aborto e remover algumas das barreiras à realização do procedimento. Opositores do aborto enxergam uma grande chance de que o governo revogue quatro medidas implementadas pelo Ministério da Saúde na gestão Bolsonaro.
Nos primeiros dias do novo governo, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, já afirmou que vai atuar pela legalização do aborto. A ministra da Saúde, a socióloga Nísia Trindade, prometeu revogar normas que ofendem "os direitos sexuais e reprodutivos." O secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Nésio Fernandes, foi na mesma direção: disse que vai desfazer medidas "retrógradas" nesse campo. A postura de Nésio é especialmente relevante porque o tema do aborto está sob a alçada dele na pasta.
A Saúde, mais do que a pasta de Cida Gonçalves, tem poder suficiente para desfazer algumas das proteções à vida estabelecidas durante o governo Bolsonaro. São normas que disciplinam os procedimentos isentos de punição segundo a lei: em caso de risco de vida à mãe e de gestações geradas por estupro.
Medidas sob risco
Uma dessas publicações é uma portaria determinando que o aborto em caso de estupro deve ser precedido de uma ocorrência policial registrando o crime. Isso acontece porque, sem essa exigência, era possível que o aborto fosse praticado em casos não permitidos em lei, sob falsas alegações de estupro. A portaria, de 2020, atualizou as normas com base em uma lei de 2018, que tornou pública e incondicionada a ação penal em crimes sexuais. Isso significa que a ação penal por parte do Ministério Público não depende da vontade da vítima em prestar queixa.
Secretário de Atenção Básica à Saúde na gestão anterior, Raphael Câmara explica que a norma apenas cumpre os requisitos legais ao assegurar o que o autor do estupro seja responsabilizado. “Se realmente houve um estupro, o estuprador vai ser punido. A gente não pode deixar para a vítima a obrigação de ir atrás do seu algoz”, diz ele.
O novo governo também pode revogar uma nota técnica que, dentre outras coisas, preenche uma lacuna legal e afirma que, mesmo nos casos tolerados por lei, o aborto não deve ser feito após a 22ª de gestação. Apesar de ser a conduta médica normal, a ressalva é necessária após órgãos como o Ministério Público Federal terem apoiado o aborto (um infanticídio, tecnicamente) de um bebê de sete meses.
“Deve-se salientar que, sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de abortamento com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 22 semanas”, diz o documento. Em seguida, a norma acrescenta que, a essa altura, o bebê tem chances de sobreviver fora do útero. “Nesses casos, cuja interface do abortamento toca a da periviabilidade e, portanto, alcança o limite inferior da viabilidade fetal, a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento é a conduta recomendada.”
Aborto a distância
Em 2021, depois que o governo autorizou o uso da telemedicina em meio à pandemia, o Ministério da Saúde publicou uma nota informativa explicando que o aborto, nos casos tolerados por lei, continuava exigindo atendimento presencial. A postura do Ministério da Saúde, respaldada por parte da Defensoria Pública da União, gerou um embate intenso com o Ministério Público Federal.
A pasta também publicou nota informativa vetando a venda remota do misoprostol, um medicamento abortivo.
Raphael Câmara diz que as declarações de Fernandes podem indicar um desacordo entre o que Lula prometeu na campanha e o que o seu governo vai fazer na prática. “Foram quatro medidas da nossa gestão contra o aborto. É preciso perguntar com todas as letras ao Ministério da Saúde se essas medidas vão ser revogadas. E, se forem revogadas, é preciso perguntar como fica a promessa do presidente da República de ser contra o aborto”, questiona Câmara.
Secretário se formou em Cuba e foi dirigente do PCdoB
Em entrevista à Folha de S. Paulo, o secretário do Ministério da Saúde defendeu um acesso maior ao aborto e afirmou ter atuado para que uma criança de dez anos abortasse em Pernambuco, em 2020. O caso gerou repercussão nacional depois que médicos capixabas se recusaram a fazer o aborto. A gestação já estava em um estágio de gestação avançado, em que a indução do parto já seria possível.
A postura pró-aborto do Secretário de Atenção Primária à Saúde é pouco surpreendente quando se leva em conta o currículo dele.
Filiado ao PCdoB, Nésio é médico, mas se formou em Cuba e passou muito mais tempo como político do que atendendo pacientes. Nésio estudou Medicina na Escola Latino-americana de Medicina, com sede em Havana. Ele teve uma bolsa de estudos do regime cubano. Em um artigo que escreveu para o site Vermelho.org, do PCdoB, Nésio elogiou a ditadura e encerrou com a saudação de Che Guevara: “Até a vitória! Sempre!”
O secretário, que tem 40 anos de idade e se formou médico aos 30, só obteve a revalidação do diploma aos 32. Foi quando iniciou um período de dois anos como profissional do Mais Médicos, segundo consta no seu currículo.
A carreira política de Nésio é muito mais antiga que a de médico. Por exemplo: em 2004, quando ainda era estudante de fisioterapia (curso que não concluiu), o atual secretário se candidatou a vereador na cidade de Tubarão (SC), sua terra natal. Ele teve 193 votos e ficou de fora. Em 2018, Nésio tentou, sem sucesso, se eleger deputado estadual pelo Tocantins. Ele também foi presidente do PCdoB no estado e atuou como Secretário de Saúde de Palmas. Mais recentemente, Nésio comandou a Secretaria de Saúde do Espírito Santo na gestão de Renato Casagrande (PSB).
Promessa de Lula
A revogação de normas que restringem o aborto contradiz o discurso do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Tentando obter o voto de eleitores cristãos, o petista divulgou uma carta em que afirma ser contra a prática e diz que o tema é da alçada do Congresso Nacional. "Para mim a vida é sagrada, obra das mãos do Criador e meu compromisso sempre foi e será com sua proteção", ele escreveu.
O que diz a lei
O Código Penal trata o aborto como crime, sem exceção, mas acrescenta que não haverá punição quando o procedimento for feito em casos de estupro e quando houver risco de vida à mãe. Apesar da falta de respaldo legal, o Supremo Tribunal Federal também decidiu que o aborto de fetos anencéfalos (sem parte substancial do cérebro) deve ser permitido.
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