Uma alteração nas regras de segurança do Twitter chamou a atenção de um pesquisador australiano para o risco da criação de um fórum de debates “legal” entre pedófilos. O criminologista Michael Salter, especialista em proteção infantil e prevenção de abusos, alertou, em posts na própria rede, que o Twitter abriu tal brecha ao não considerar violação a sua política sobre exploração de menores a manifestação sobre "atração por menores".
"Em 2019, o Twitter silenciosamente mudou seus termos de serviço para permitir discussões sobre 'atração por menores', com a condição de que 'elas não promovam ou exaltem a exploração sexual infantil de forma alguma'. Os especialistas em proteção infantil e prevenção de abusos não foram consultados, porque nunca teríamos endossado", tuitou Salter.
Para ele, a situação é perigosa, por poder aproximar pessoas com interesse pelo tema.
"É comprovadamente inseguro promover conversas públicas não monitoradas entre grandes grupos de pedófilos. Os desejos sexuais e a inclusão social deles foram priorizados pelo Twitter em detrimento da segurança das crianças na plataforma ou na comunidade. No ano passado, as redes de pedofilia no Twitter explodiram", sustenta.
Segundo os termos do Twitter, atualizados em março de 2019, não representam violação à “política de tolerância zero à exploração sexual de menores” da empresa “discussões relacionadas à exploração sexual de menores como um fenômeno ou atração de menores são permitidas, desde que não promovam nem exaltem a exploração sexual de menores de forma alguma”. O Twitter também abre exceção para retratações artísticas de menores nus em um contexto ou ambiente não sexualizado e podem ser permitidas em alguns cenários, por exemplo, trabalhos de artistas de renome internacional que apresentam menores.
A nova política adapta as regras do Twitter ao entendimento de que a pedofilia em si não é crime, mas sim um transtorno de sexualidade, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como doença, que consiste na preferência sexual por meninos ou meninas pré-púberes ou no início da puberdade.
Em resposta a Salter, um porta-voz do Twitter alegou que não houve mudança na política e apenas uma mudança na forma como a política foi comunicada aos usuários, mas não explicou se houve alguma mudança na maneira como a política é interpretada e aplicada. Ele disse que as regras do Twitter passam por ampla consulta com acadêmicos e especialistas que fazem parte do Conselho de Confiança e Segurança, que inclui defensores da proteção à criança, como o Centro Nacional dos EUA para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC), o Family Online Safety Institute e o Internet Watch Foundation.
À Gazeta do Povo, a assessoria de imprensa do Twitter enviou a seguinte nota: "O Twitter tem tolerância zero em relação a qualquer material que mostre ou promova a exploração sexual de menores. Independentemente da intenção, a visualização, o compartilhamento ou a vinculação de materiais de exploração sexual de menores contribui para a revitimização do menor retratado. Isso não é tolerado em nosso serviço".
Para o advogado especialista em direito digital Jonatas Lucena, o Twitter não pode impedir a discussão sobre o tema, porque isso viria a ferir a liberdade de expressão. Ele concorda, no entanto, que a existência de pessoas falando sobre atração por menores na rede social permite a reunião de pessoas com interesses comuns e facilita a atuação de criminosos.
“Porque pessoas, mesmo que não tenham o distúrbio, podem se aproximar dessas pessoas, explorar sua vulnerabilidade e divulgar, de forma velada, algum ‘serviço’ criminoso de distribuição de pornografia infantil, por exemplo”.
O caminho, cita ele, é a filtragem pelos provedores de conteúdo “mesmo não tendo a obrigação legal disso” e o monitoramento pelas autoridades e pelos demais usuários. “As autoridades podem e já fazem o monitoramento das conversas por temas e palavras-chave. A Polícia Federal, a Polícia Civil de vários estados e, até, a polícia internacional, estão com sua inteligência atenta à movimentação nas redes”, diz.
O jurista também questiona a outra exceção permitida pelo Twitter, de divulgação de imagens artísticas com menores nus.
“Em hipótese alguma pode ser permitida a exibição artística de criança nua. O Estatuto da Criança é taxativo nisso, e não é o Twitter que vai definir, é a lei. Se o Twitter não impedir, ele e a pessoa que postar o conteúdo ilegal, assim como quem retuitar, serão processados pelo Estado brasileiro”, diz.
Pesquisador em sistemas complexos e redes aplicadas no combate ao crime, o agente da Polícia Federal Bruno Requião da Cunha, autor de estudos sobre o comportamento de redes de pornografia infantil, reconhece que não há crime no fato de pessoas conversarem sobre pedofilia ou mesmo revelarem ter desejo sexual por menores de idade. No entanto, ele concorda que existe o risco de, ao se agruparem pessoas com esse interesse em comum, a ação criminosa de compartilhar pornografia infantil pela internet seja facilitada.
“Não que elas vão compartilhar isso pelo Twitter, mas permite que eles se conectem, facilitem a comunicação para depois passarem para uma rede restrita, como a darkweb ou a deepweb”, diz. Para ele, nem mesmo o argumento da liberdade de expressão é suficiente para tal abertura.
“A preocupação que o Twitter tem com as fake news é desproporcional com a falta de atenção que eles têm com a proteção à criança”.
O policial federal cita que a comercialização virtual de pornografia infantil é um dos mercados ilícitos que mais cresce anualmente no mundo – mais que drogas e armas. “E esse tipo de dado deveria alertar empresas como o Twitter e o Facebook, que lidam com conexões entre pessoas e que podem estar conectando um pedófilo do Camboja com um de Curitiba para que, depois, eles troquem mídia de pornografia infantil”.