Obra de arte não tem religião. Mas na prática não é o que parece. Pelos quatro cantos do país é fácil encontrar igrejas que estão a ponto de ruir. Diria o arcebispo de Juiz de Fora, dom Gil Antonio Moreira, presidente da comissão de bens culturais da regional Leste, que as casas de Deus representam 60% das obras artísticas do país. O problema é que muitas estão abandonadas porque esbarram em uma questão de crença: quem não é religioso normalmente não se interessa em saber quais foram as técnicas construtivas aplicadas nesses verdadeiros templos arquitetônicos. E pior. Há padres rezando por aí que igrejinha de madeira é coisa de pobre: quando existe dinheiro, ele não é usado na conservação, mas com o intuito de derrubar tudo e construir a sonhada igreja de alvenaria, mais moderna. "Antes ainda existia a aura de que se estragar é pecado. Hoje nem isso", afirma o arquiteto Key Imaguire, que estuda a arquitetura de madeira no estado.É no interior do Paraná que estão escondidas as verdadeiras relíquias de madeira, muitas desconhecidas por grande parte dos próprios paranaenses. Ao todo, são cerca de 200: 25 delas foram catalogadas em um dossiê arquitetônico que virou livro, intitulado Igrejas Ucranianas: arquitetura da imigração no Paraná.
O estudo desta arquitetura é uma lição de herança cultural, da relação do homem que chegou por aqui (no caso os ucranianos) com o ambiente que encontrou, com a matéria-prima que necessitava para reconstruir sua identidade. Não por acaso, três das igrejas construídas por esses imigrantes já têm tombamento estadual e duas estão com processo de tombamento federal. "Não sei se o tombamento é a melhor alternativa, porque pode engessar. É lógico que se for tombado e vir o recurso [como em Antonio Olinto], ótimo. Caso contrário, é importante trabalhar com a comunidade para explicar a importância da manutenção e do que não deve ser feito, para que não se cometam besteiras durante a reforma", explica Key.
Acesso
É difícil chegar a grande parte dessa igrejas, o que de certa forma justifica a falta de prestígio. Elas ficam em áreas rurais e o acesso normalmente se dá por meio de uma estrada de barro vermelho que vira lamaçal em dias de chuva. O pior é que as antigas famílias, que cuidavam desse patrimônio, estão sumindo. "Certas comunidades são muito pequenas. Em uma delas, havia quatro famílias que cuidavam da igreja. Os filhos casaram, foram embora e não há mais pessoas da comunidade para fazer a manutenção", diz Key Imaguire. "Quando passamos pelo interior para fazer o levantamento, um grupo de senhoras nos perguntou quando o padre iria voltar para rezar a missa. Ou seja, nem o sacerdote pertence mais ao local."
Grande parte das igrejas foi construída no século 19: elas normalmente têm uma torre sobre os telhados, com base octogonal e que acaba com uma cúpula que parece a silhueta de uma pera. "A cúpula acabou virando o símbolo dos ucranianos no Brasil", explica a arquiteta Marialba Gaspar Imaguire, uma das autoras do livro. A cúpula, segundo Marialba, é quase sempre aberta na parte que fica no interior da igreja, para seguir a lógica de canalizar as orações ao céu. "É uma arquitetura semelhante à das igrejas russas, mas os próprios ucranianos negam isso, provavelmente por causa da ocupação russa na Ucrânia", afirma. Algumas igrejas chegam a ter pequenas varandas na entrada.
As três mais antigas do Paraná são as igrejas de São Miguel de Arcanjo (em Dorizon), Nossa Senhora da Imaculada Conceição (Antônio Olinto) e Espírito Santo (General Carneiro). "Percebe-se nesses primeiros templos a perpetuação no Paraná da constituição do sistema construtivo da Ucrânia", diz Marialba.
Internamente a obra de arte também se repete. As igrejas têm pinturas bastante coloridas, feitas com a técnica estêncil, muitas com padrões geométricos que mais parecem bordados e pinturas de pêssankas. As pinturas podem ainda representar tapetes, cenas do cotidiano ou buscar reflexões espirituais.
Simbologia
A iconostáse é um dos artigos de alto custo das igrejas ucranianas e acaba tendo destaque somente nas mais importantes, como a de São Josafat, em Prudentópolis. É um painel com ícones de santos que ganhou importância no período Renascentista e teve seu ápice durante o período barroco, quando foram trabalhadas com entalhes e cores douradas. Outras preciosidades são os campanários. A arquitetura tem igual importância, pois se comunica de certa forma com a da igreja, mas normalmente menor, com uma cobertura que protege os sinos.
Como as igrejas ficam "escondidas", já se pensou em criar um roteiro turístico para divulgá-las. Mas, enquanto o projeto não sai do papel, pelo menos o levantamento feito pelos arquitetos "mudou o conceito dos padres, que passaram a valorizar mais as igrejas de madeira e desistiram da ideia de construir uma de alvenaria no lugar", de acordo com Key. A solução de engessar a arquitetura com cimento só aconteceu na Igreja de São Pedro de São Paulo, em Irati, porque ela estava para ruir: a comunidade decidiu fazer o lado de fora de alvenaria e deixar a parte interna intacta, com as paredes de madeira.
Apesar do rico patrimônio encontrado no Paraná, é na Bahia e em Minas Gerais que estão as principais arquiteturas religiosas do Brasil. Mesmo assim, a degradação também existe nesses estados.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ligado ao Ministério da Cultura, diz que a atual política é a de se voltar para a arquitetura religiosa de outras localidades do país. Um exemplo é a igreja de Antonio Olinto no Paraná: a primeira do estado a receber verbas federais para o seu restauro.
Serviço:
O estudo das 25 igrejas está no livro Igrejas Ucranianas: arquitetura da imigração no Paraná, dos arquitetos Fábio Domingos Batista, Sandra Magalhães Corrêa e Marialba Gaspar Imaguire. A obra é do Instituto Arquibrasil. Mais informações pelo telefone (41) 3252-7634.