E se os moradores das principais comunidades pobres de uma cidade trocassem correspondência e descobrissem que seus problemas não são apenas seus? Esse é o fio condutor da websérie Cartas Urbanas, lançada no último fim de semana em Fortaleza, Ceará. Produzida pelo Coletivo Nigéria, o trabalho faz parte das ações de comunicação e divulgação da pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil - avanços e bloqueios”, realizada em rede pelo Laboratório de Estudo das Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e outros dois núcleos, Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ) e o LabCidade (Fauusp), com o apoio da Fundação Ford e do CNPq.
Em seus primeiros três episódios – outros três serão lançados a partir de maio –, Cartas Urbanas parte do histórico e dos relatos dos moradores das comunidades Trilha do Senhor, Grande Bom Jardim e Serviluz para fazer uma análise crítica sobre as disparidades sociais de Fortaleza e questionar, afinal, quem tem direito à cidade no Brasil. a luta pelo direito à cidade em Fortaleza – e, a bem dizer, no Brasil. Com 13 minutos de duração, cada capítulo expõe os dramas de uma das comunidades e também traz a análise dos pesquisadores do Lehab e dos militantes de movimentos sociais atuantes na capital cearense.
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Leia a matéria completa“Esta é a nossa primeira experiência de pesquisa contando com uma estratégia de comunicação social. Diante da temática da pesquisa, apresentamos o projeto ao grupo [Coletivo Nigéria] e houve total sintonia”, explica Valéria Pinheiro, pesquisadora do Lehab/UFC. “Buscamos com o Cartas Urbanas completar uma lacuna no que se refere à divulgação das questões tratadas na pesquisa, especialmente as pressões sofridas, as ações e omissões do poder público; os impactos das remoções e da desterritorialização de comunidades, e em especial as suas resistências”, complementa Valéria.
“A gente já conhecia o pessoal do Lehab/UFC, por outras ocasiões, porque o tema da moradia é um tema que a gente já trabalhava. Quando eles foram trabalhar esse tema, há quase dois anos, nos chamaram para uma assessoria de comunicação. E o Cartas Urbanas foi um produto resultado desse processo”, conta Roger Pires, jornalista e um dos três integrantes fixos do Coletivo Nigéria, conhecido por suas coberturas nada convencionais de temas sociais.
Um dos trabalhos mais vistos do Nigéria é o longa Com Vandalismo , sobre os protestos de junho de 2013 em Fortaleza. Roger, Bruno Xavier e Yargo Gurjão são todos jornalistas e encontraram na produção audiovisual centrada no acompanhamento das ruas e dos movimentos sociais uma nova forma de trabalhar. Seus vídeos são geralmente financiados a partir de editais de pesquisa e cinema, e oferecem um olhar nada convencional aos temas sociais do país.
As comunidades
Conheça um pouco sobre cada comunidade de Fortaleza retrata em Cartas Urbanas:
Trilha do Senhor
Comunidade que fica no bairro nobre Aldeota, de Fortaleza. Com a obra do Veículo Leve sobre os Trilhos (VLT) ramal Parangaba-Mucuripe, prometida para a Copa de 2014, várias famílias foram removidas do local e outras tantas lutam para permanecer onde estão. O projeto do VLT como um todo prevê 12,7 quilômetros de trilhos, cruzando 22 bairros da capital cearense e gerando a necessidade de uma quantidade enorme de desapropriações. Ainda em 2013, a Defensoria Pública em Fortaleza e o Ministério Público Federal estimaram que as remoções afetariam 5 mil famílias no total. Em agosto de 2015, um dos trechos do VLT teve suas obras retomadas, mas o chamado terceiro trecho, que corresponde a 60% do percurso total do projeto e onde estão as comunidades Trilha do Senhor e Lagamar, ainda está parado. Segundo informações do Diário do Nordeste, cerca de mil famílias que deveriam ser removidas desses locais pelo projeto da prefeitura de Fortaleza ainda permanecem lá. O número já é bem menor que o previsto anteriormente e isso graças à resistência dessas famílias que obrigaram o poder público a rever seus planos iniciais.
Grande Bom Jardim
Em Cartas Urbanas, o Grande Bom Jardim, conjunto de cinco bairros localizados na periferia de Fortaleza, é caracterizado como uma fronteira esquecida. Classificado como Zona Especial de Interesse Social (Zeis), os pesquisadores do Lehab/UFC consideram o Grande Bom Jardim como um símbolo da periferia desassistida para qual o poder público não costuma olhar no Brasil. A localidade só ganhou status de Zeis, aliás, pela luta da comunidade, durante as discussões do Plano Diretor de 2009. Era a única forma de pleitear sua urbanização. O problema é que o crescimento populacional continua a passos mais largos no Grande Bom Jardim que em outros bairros de Fortaleza, o que, segundo o Lehab/UFC, só tende a agravar a carência por serviços e equipamentos públicos da comunidade. E enquanto os instrumentos previstos no Plano Diretor não forem regulamentados e não saírem do papel, nada mudará.
Serviluz
Longe da Avenida Beira-Mar de Fortaleza, está a comunidade de Serviluz, bairro litorâneo de Mucuripe, em Fortaleza. Cobiçado pelo mercado imobiliário, a localidade está longe de ter as melhorias que merece, de saneamento básico à reurbanização e regularização das moradias já existentes ali. Em 2013, no auge de uma efervescência política na comunidade, que lutava contra a possível instalação de um estaleiro na região, a prefeitura de Fortaleza anunciou o projeto Aldeia da Praia, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2. O plano era requalificar parte das vias e da beira-mar da comunidade, com a construção de mil casas e a reforma de outras mil, além de promover a regularização fundiária de famílias que ainda não tinham posse de seus terrenos. O problema é que, para isso, cerca de 800 casas, que não estão em área de risco ou ambiental, teriam de ser demolidas para o alargamento de ruas e a construção de um calçadão. Elas seriam realocadas para um terreno próximo, mas já fora do Serviluz. Além disso, as intervenções não previam outras necessidades básicas, como obras de saneamento para todos os moradores. A ordem de serviço do Aldeia da Praia chegou a ser assinada em junho de 2013, mas a obra está parada porque a construtora que ganhou a licitação desistiu do projeto naquele mesmo ano. Os moradores da comunidade, por sua vez, se recusam a aceitar a ideia. Eles temem o despejo.
Onde assistir
A websérie Cartas Urbanas foi disponibilizada pelo Coletivo Nigéria em sua página no Facebook e também no Vimeo (que oferece melhor qualidade de visualização). A produção e também outros materiais advindos da pesquisa conduzida pelo Lehab/UFC e outros núcleos de pesquisa do país estão ainda disponíveis no site www.direitoacidadefortaleza.com.br. Três dos capítulos já estão prontos, outros três em fase final de edição e devem ir ao ar a partir de maio.