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futuro das cidades

As marcas urbanas da violência colonial

Retrato de Enedina Alves Marques, a primeira mulher engenheira do Brasil, que trabalhou no conjunto de edificações do Centro Cívico de Curitiba. Imagem é do acervo do historiador Sandro Luis Fernandes. | Henri Milleo/ReproduçãoI/
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Retrato de Enedina Alves Marques, a primeira mulher engenheira do Brasil, que trabalhou no conjunto de edificações do Centro Cívico de Curitiba. Imagem é do acervo do historiador Sandro Luis Fernandes. (Foto: Henri Milleo/ReproduçãoI/ Gazeta do Povo)

A raça, embora seja conceito biologicamente superado, continua a operar como critério de classificação dos sujeitos e a estruturar a distribuição do poder no sistema capitalista. Convertido no pós-abolição em construção social legitimadora da exploração da mão-de-obra dita “livre”, o racismo sobreviveu mesmo à derrocada das premissas eugênicas em voga no mundo “científico” da virada do século. Assim é que, enquanto processo de produção de identidades políticas e contrastivas, atravessa a classe e o gênero, constituindo-se fator fundamental para compreender a dinâmica hierarquizada das relações inter-raciais.

Sob essa ótica, o racismo não se resume ao preconceito, mas está arraigado nas estruturas. Nas estruturas do conhecimento, inclusive. A história hegemônica da urbanização, de autoria da intelectualidade branca e predominantemente masculina, tem invisibilizado a participação negra e indígena na construção das cidades e na formação da nação brasileira. Mais do que uma simples gafe ou uma lacuna, o que se estabelece aqui é uma estratégia constante de desumanização das pessoas e dos povos não brancos. Trata-se de máxima expressão da violência cognitiva: um voraz epistemicídio.

“Das várias formas de preconceito que continuamos a experimentar no século 21, um racismo muito mais perigoso do que o racismo institucional do passado é o racismo que está arraigado nas estruturas.”

Ângela Yvonne Davis, professora e filósofa norte-americana que ganhou notoriedade na década de 1970 por sua relação com os Panteras Negras e outros movimentos de direitos civis.

Esse apagamento, de um lado, alinhado à forma(ta)ção sectária do espaço urbano, de outro, deve ser lido como manifestação das mecânicas racistas da sociedade como um todo: não é apenas o território habitado que define a segregação nele experimentada, mas são as interações sociais, em diversos âmbitos da vida, que, orientadas pela branquitude normativa, objetivam manter o status quo, isto é, a mesma lógica colonial da casa grande/senzala, traduzida no tecido urbano como centralidades/periferias.

A herança da escravidão não deixou cicatrizes apenas nos corpos e espíritos. Marcas da violência colonial estão impressas na carne das cidades brasileiras e de todo o Sul geopolítico. Nesse contexto, raça, classe e gênero incidem simultaneamente para impor o lugar sociopolítico da pessoa negra. As cidades exprimem os conflitos e desigualdades da produção do espaço, ao mesmo tempo em que os acirram e (re)produzem. Isso já era evidente na gênese oitocentista do urbanismo, cuja perspectiva higienista marginalizou populações estigmatizadas, sob a falsa neutralidade da técnica. Atuando como saber ou disciplina de esquadrinhamento e controle, o urbanismo colabora para aprofundar a segregação socioespacial, que é igualmente, étnico-racial. Flagrantemente eurocentrado, ele tem ignorado o impacto do racismo nas principais decisões geopolíticas num quadro de desenvolvimento geográfico desigual e de globalização conflitiva.

Em toda a América nos deparamos com os vestígios dramáticos desses tão presentes passados. O cenário não difere nas cidades africanas, colonizadas massivamente nos séculos 19 e 20 e gravemente feridas pelo urbanismo modernista, que sob os preceitos (e preconceitos) da ordem, separou física e simbolicamente brancos e não brancos. Assim, a institucionalização do apartheid seria apenas a explicitação posterior de um regime urbano já vigente. A matriz funcionalista imperante no período andou de mãos dadas com a política colonial: as cidades africanas, construídas por mãos negras, não pertenciam de fato a elas.

Lá e cá, do quilombo à favela, os nós de uma teia urbana racialmente hierarquizada denunciam perversas continuidades. Áreas dotadas de melhor infraestrutura e de maior capital político, são as casas-grandes contemporâneas. Enquanto isso, a precariedade das periferias evoca as senzalas de outrora. Não por acaso o hip-hop as vem designando “periafricanias”, pois, nelas, a presença afrodescendente é escancarada. A atitude crítica do hip-hop desvenda, assim, uma territorialidade fragmentada, excludente e segregadora, questiona o lugar da/o negra/o na sociedade e transforma esses territórios em espaços de resistência e esperança: os quilombos do século 21.

Patrimônio, memória e embranquecimento

As fronteiras simbólicas das cidades são acentuadas pelo quase total desconhecimento sobre as espacialidades africanas e afro-brasileiras. É chegada a hora de questionar a confecção da memória e o seu deliberado embranquecimento. Vergonhoso constatar o número pífio de bens arquitetônicos tombados nacionalmente em alusão à história das/os negras/os e seus saberes. Vale lembrar que a emergência das políticas de preservação no país testemunhou um período em que se buscava construir o patrimônio cultural pautado pelo desejo de unicidade e homogeneidade da nação brasileira. Em plenos anos 1930, as diretrizes para sua institucionalização foram embasadas em valores da elite, consagrados na monumentalização da arquitetura colonial de estruturas de poder, não raro apaziguando e encobrindo seu lado opressor. Noutras palavras, uma memória parcial que se arroga universal, sob os moldes da razão metonímica da modernidade ocidental: eurocêntrica, androcêntrica, urbanocêntrica, etnocêntrica e heteronormativa.

A cristalização de uma única memória arquitetônica também acaba por perenizar sistemas de dominação social em favor de determinados grupos. Esse viés predominou até a Constituição de 1988, a qual incorporou referências culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Passadas três décadas, no entanto, essa transição discursiva não deu conta de reverter significativamente a paisagem embranquecida da historiografia oficial. No livro do tombo do Iphan, permanecem exíguos os bens culturais indígenas e afro-brasileiras, tanto no concernente a conjuntos urbanos quanto a ícones arquitetônicos isolados. Dos quase mil bens materiais protegidos em nível federal, apenas 1% concerne à memória afrodescendente: 02 quilombos, 09 terreiros, 01 senzala e 01 museu da “magia-negra”, num total de irrisórios 13. Urge, portanto, revisitar o passado para reinventar o futuro. Outros sentidos, técnicas, materiais e modos de habitar merecem ser registrados, valorizados e integrados, de fato, na memória coletiva nacional.

Construindo a cidadania negra

Acompanha o apagamento dos bens construídos um silêncio quase generalizado em torno de relevantes personalidades negras da construção civil brasileira. Os irmãos engenheiros André e Antônio Rebouças são um dos poucos exemplos a receber a devida atenção da historiografia recente. Sua contribuição, porém, extrapola em muito os arrojados empreendimentos ferroviários com que se fizeram populares: é de autoria deles o primeiro grande plano de saneamento do Rio de Janeiro, responsável por inaugurar o abastecimento de água domiciliar para os mais pobres da então corte. Estudos similares foram encomendados para a Curitiba imperial, a ponto da fonte na Praça Zacarias ser-lhes dedicada.

Na capital paranaense, outros nomes são dignos de menção, como Vicente Moreira de Freitas, um dos mestres à frente da reforma da Igreja Matriz, atual catedral. Tendo conquistado sua liberdade em meados de 1880, o exímio construtor tinha também expressivo engajamento político. Foi membro da Irmandade do Rosário dos Pretos, locus de associativismo e resistência da comunidade negra de Curitiba. No ano da abolição, participou da fundação da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, sendo responsável pela edificação de seu primeiro prédio. Sociedade esta que, no dia hoje, aliás, faz aniversário.

Décadas mais tarde, a curitibana Enedina Alves Marques foi a primeira mulher a se diplomar em engenharia civil no Sul do país. E a primeira brasileira negra a integrar a categoria. Formada na Faculdade de Engenharia do Paraná, em 1945, a despeito do preconceito, consagrou-se profissionalmente na Secretaria de Estado de Viação e Obras. Sua produção e trajetória apenas agora começam a ser desveladas. Militava na União Cívica Feminina e no Centro Feminino de Cultura. Sabe-se, ainda, que contribuiu ativamente com Octávio Ianni para o seu livro “Metamorfoses do escravo” (1962).

Reconhecer o protagonismo de mulheres e homens negras/os é inadiável para descolonizar a memória, chave para o empoderamento e a emancipação coletivos. Construtoras/es de cidades e de cidadania, suas histórias desconstroem a versão embranquecida de um 13 de maio que pretendeu, durante muito tempo, reiterar a subalternização e o apassivamento. Ao contrário de comemorativa, esta é uma data de luta contra as marcas da violência colonial arraigadas nas estruturas e nos territórios brasileiros.

*Sobre os autores: Andréia Moassab, é arquiteta e urbanista, doutora em comunicação e semiótica. Autora do livro “Brasil Periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop” e docente da UNILA - Universidade Federal da Integração Latino-Americana; Joice Berth é arquiteta e urbanista, pós-graduanda em Direito Urbanístico pela PUC/MG. Pesquisadora de questões raciais e gênero e colunista do portal Justificando e do Site Nó de Oito; Thiago Hoshino é mestre em direito, professor universitário e pesquisador do Observatório das Metrópoles . Membro do Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana e da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde.

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