Enquanto Dennis Wu se sentava com centenas de pessoas no meio de uma movimentada rua de Hong Kong, a cena o fez se lembrar dos protestos pró-democracia de 2014. Só que Wu, estudante de 18 anos, e as pessoas ao redor não estavam preocupadas com a repressão policial. Dessa vez, estavam participando de uma experiência sem carros no distrito central da cidade, onde as manifestações explodiram dois anos atrás, bloqueando a via para veículos durante semanas. “A única diferença é o clima”, ele conta.
Embora os protestos tenham acabado sem conquistar suas metas, eles mostraram que o centro, distrito financeiro movimentado e geralmente entupido de veículos, era muito mais agradável sem trânsito. Após o caos inicial das manifestações ter desaparecido, um trecho de 1,5 quilômetro da via virou um espaço público fértil com ideias e aspirações.
Os manifestantes e seus apoiadores montaram salas de estudo improvisadas, bibliotecas e até uma granja orgânica. Funcionários de escritório passeavam pela cidade de barracas, livres do costumeiro ruído de motores de ônibus rugindo e do cheiro intoxicante do cano de escapamento.
Patrick Fung, diretor executivo da Clean Air Network, uma das organizadoras da experiência sem veículos, afirma que os protestos levaram os moradores a repensar na falta de espaço para pedestres em Hong Kong. “Pelo menos durante os protestos, as pessoas desfrutavam a liberdade de um espaço público, almoçando e pedalando ali. Muitas delas disseram que a qualidade do ar era boa e que o tempo gasto no deslocamento entre casa e trabalho havia diminuído”, diz Fung.
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No ano passado, o grupo de Fung formou uma aliança com vários grupos acadêmicos e ambientais para defender a transformação da maior parte da Des Voeux Road Central, via importante nos arredores do ponto de protestos de 2014, numa área exclusiva para pedestres e bondes; os bondes são elétricos e não contam com canos de escapamento.
Ilustrações de sua proposta apresentam uma versão da rua que quase parece boa demais para ser verdade: trilhos de bonde margeados por grama, restaurante com espaço ao ar livre e pessoas relaxando em vez de reclamarem em meio à multidão.
A aliança espera reproduzir o sucesso de calçadões para pedestres como a Times Square, em Nova York, La Rambla, em Barcelona, e Martin Place, em Sydney. Ao realizar o experimento, os organizadores esperavam conquistar o público oferecendo um gostinho – ainda que limitado – de sua visão.
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Experimento
Em um domingo de setembro, um trecho de 200 metros da Des Voeux Road Central, com bancos e “cha chaan tengs”, restaurantes ao estilo local, foi fechado ao tráfego.Havia música e apresentações de dança, exposição de arte e atividades para as crianças. A atração mais popular, porém, parecia ser sentar na grama artificial e bater papo, sem a pressão de sair da frente.
Muitas pessoas acharam a experiência refrescante, dizendo ansiar por mais espaços públicos do gênero. “Eu trabalhava aqui. Estou surpresa que seja possível transformar este lugar em um espaço relaxante. Nós vivemos sob um estresse constante, em um ambiente superlotado, então é revigorante ter mais espaços do gênero”, afirma Rachel Chan, que veio acompanhada com a filha de oito anos.
Eric Schuldenfrei, professor adjunto da Universidade de Hong Kong que desenvolveu a proposta visual do projeto, avalia que o evento deu ao público a chance de usar criativamente as ruas da cidade. Segundo ele, é uma experiência cada vez mais comum em muitas grandes cidades, mas inédita em Hong Kong.
“As pessoas não estavam apenas se deslocando pela cidade, mas usando a rua para se encontrar, conversar e participar nos eventos uns dos outros. Por mais simples que pareça, esse era um elemento que falta em Hong Kong”, afirma Schuldenfrei.
Ele afirma que se Hong Kong quisesse atrair mais turistas, deveria oferecer “uma ampla gama de experiências”. “Uma simples caminhada por uma rua da cidade é uma experiência que está começando a desaparecer no centro”, acrescentou. Conhecida como Very DVRC, em função das iniciais da rua, a iniciativa também explorou os argumentos empresariais e turísticos do plano.
Donald Choi, diretor geral da Nan Fung Development, empreendedora imobiliária, diz apoiar a ideia. “Não consigo imaginar uma proposta melhor do que essa”, declarou ele durante debate no ano passado, quando o grupo apresentou o plano. “É uma coisa que vai gerar muito interesse, muita atração, não apenas para os turistas, mas também para os moradores e usuários locais.”
Segundo Choi, que trabalha no centro, a poluição atmosférica, o barulho dos motores e as calçadas congestionadas tornam a rua tão desagradável que ele tentava fugir usando uma passarela mais distante. “As pessoas nem sequer conseguem parar diante das lojas para ver as vitrines. Você vive sendo empurrado. É muito congestionado.”
Ideia antiga
A ideia de transformar o 1,5 quilômetro da rua em calçadão permanente e de uso exclusivo de bondes foi apresentada pela primeira vez em 2000 pelo Instituto de Urbanismo de Hong Kong, mas chamou mais atenção nos últimos anos, conforme pioraram a poluição do ar e o congestionamento.
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Em 2014, o governo de Hong Kong realizou um estudo com soluções possíveis, propondo, em março, cobrar pedágio dos motoristas. Ainda que o governo de Hong Kong tenha reconhecido o potencial da proposta em melhorar a qualidade do ar, a resposta oficial ao plano não foi das melhores em termos de mudança imediata, já que as autoridades exigiram um relatório detalhado de viabilidade e de análise do tráfego.
Ao contrário de várias outras áreas menores da cidade onde o governo restringiu temporariamente o acesso de veículos – como as ruas íngremes do distrito de entretenimento de Lan Kwai Fong –, a Des Voeux Road Central conta com dezenas de pontos de ônibus e muitos cruzamentos.
Ao ser questionado a respeito da proposta em janeiro, Anthony Cheung Bing-leung, ministro dos transportes de Hong Kong, disse que a proposta levaria os veículos “às ruas vizinhas com mais áreas residenciais, prejudicando igualmente a qualidade do ar dessas regiões e aumentando o barulho”.
Apesar da resposta oficial indiferente, Fung, diretor da Clean Air Network, se sentiu encorajado pelo fato de 13 mil pessoas terem visitado aquele trecho da rua naquele domingo. Seu grupo espera ganhar apoio público para mais dias sem trânsito. “Começamos pequenos, mas podemos dobrar ou triplicar a escala”, acredita ele.
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