Se formos acreditar em uma antiga lenda, Roma foi criada nas margens do Rio Tibre, onde os míticos fundadores da cidade, Rômulo e Remo, foram resgatados e amamentados por uma loba. Por séculos, a hidrovia – que já foi até mesmo deificada como o deus Tiberinus – apoiou a grandeza da cidade. Recentemente, no entanto, a sorte do Tibre não tem sido muito divina.
Grandes extensões do calçadão em frente ao rio, que se encosta às barragens de rochas travertinas construídas depois da enchente desastrosa de 1870, foram abandonadas ao duvidoso talento artístico dos grafiteiros. Corredores e ciclistas precisam desviar de lixo, vegetação alta e acampamentos improvisados de moradores de rua, apesar de décadas de promessas feitas pelas autoridades municipais de que limpariam a beira do rio.
A margem imunda e as águas turvas são um reflexo doloroso do abandono e da degradação generalizados que estão cada vez mais manchando a beleza de Roma, sendo a falta de atenção o sintoma de um gerenciamento turbulento – às vezes corrupto – por parte de administradores municipais inadequados.
Confrontados com a inação municipal, que se justifica falando que faltam meios e dinheiro, várias associações estão assumindo a causa. Alguns desses grupos adotaram o Tibre como um recurso negligenciado para, por meio de várias iniciativas, promover, desenvolver e defender.
O mais recente esforço aconteceu em abril, ao longo de um trecho de 457 metros da barragem, com uma incongruente procissão de personagens históricos interpretando uma série de “Triunfos e Lamentos” – como o projeto é chamado – da história de Roma.
As figuras foram criadas usando grandes moldes e uma boa lavagem para apagar todas as camadas de fumaça, fuligem e pátina biológica da barragem – um processo algumas vezes chamado de pichação reversa – para produzir beleza usando a sujeira.
O antigo estadista Cícero, São Pedro e a já mencionada loba estão entre as dezenas de figuras, desenhadas a partir de esculturas icônicas, fotografias e monumentos, junto com a estátua de Santa Teresa em êxtase de Bernini. Também há celebridades: Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, dos dias de “Dolce Vita”. E há os desconhecidos e anônimos: três viúvas sem nome de incontáveis migrantes que se afogaram tentando cruzar o Mediterrâneo até a Itália.
“Não há uma narrativa específica, a não ser a de que os triunfos e as glórias de todos são o lamento e a vergonha de outros”, explicou o criador do projeto, o artista sul-africano William Kentridge em uma tarde recente enquanto passeava ao longo do Tibre. Ele estava acompanhado do ministro da Cultura italiano, Dario Franceschini, que apoiou o trabalho depois de muitos anos de oposição administrativa e obstáculos burocráticos.
“Foi um verdadeiro desafio conseguir que a arte contemporânea fosse aceita no coração da antiga Roma”, afirmou Kentridge, mesmo que o projeto tivesse como objetivo atrair os romanos para a margem abandonada, para dar-lhe uma vida nova.
“Nossa missão é reativar o espaço público que achamos que foi esquecido, pegando peças abandonadas de infraestrutura e usando arte contemporânea específica para aquele local para transformá-lo em uma área pública novamente”, diz Tom Rankin, diretor da Tevereterno, uma organização sem fins lucrativos.
A Tevereterno requisitou essa seção central do Tibre mais de uma década atrás para criar um espaço público dedicado à arte contemporânea, chamado Piazza Tevere. Hoje, quer projetos de arte – o mural de Kentridge foi o mais ambicioso até agora – para mudar a maneira como os romanos pensam o Tibre, agindo como “catalizador para mudanças ao longo do rio”, afirma Rankin.
A maioria das capitais com rios, segundo ele, “já agiram há muito tempo”. De nada ajuda o fato de que o Tibre é quase uma terra de ninguém administrativa, com mais de uma dúzia de escritórios públicos – da cidade, da região, da autoridade portuária, de agências ambientais e regionais e assim por diante – compartilhando poderes de supervisão sobre ele.
“Quando se trata do que fazer, não está claro quem é o responsável direto, assim ninguém faz nada”, explica Giovanni Maria Amendola, presidente do Consorzio Tiberino, uma associação que tem como objetivo promover o Tibre.
A agência municipal de coleta de lixo de Roma, a AMA, por exemplo, mantém a ciclovia limpa, mas não toca na calçada colada a ela. “Não é uma obrigação, então eles não limpam. É um paradoxo”, conta Amendola.
Esse pensamento tem alimentado uma recente onda de movimentos públicos organizados por cidadãos que querem colocar a mão na massa. “Nossa ideia de falar com as instituições é diferente. Nós dizemos: ‘Eu vou limpar o rio’. Não vamos ligar para o prefeito para reclamar”, afirma Rebecca Spitzmiller, americana que mora na Itália e é professora de legislação comparada na Universidade Roma Três.
Ela é a cofundadora de um desses grupos, o Retake Rome, de 2009. Desde então, Rebecca e um pequeno exército de recuperadores, como eles mesmos se chamam, envolveram-se em uma batalha coletiva para livrar as ruas de Roma de montes de lixo, camadas de cartazes de publicidade e pichações feitas em milhares de palacetes.
Seu grito de guerra tem sido: “Acorde, limpe, fale”. Hoje o grupo, que tem cerca de 300 membros, realiza limpezas semanais em praças e ruas da vizinhança, assim como em partes da margem do Tibre. “A Piazza Tevere é um marco para o renascimento do rio” e tem como objetivo se tornar o local de futuros projetos celebrando Roma e o Tibre, diz Kristin Jones, artista de Nova York que fundou e é a diretora artística da Tevereterno. O rio “é a espinha dorsal da cidade, e pode se tornar um parque magnífico”.
Por enquanto, as figuras de Kentridge permanecem como um lembrete da tarefa de Sísifo que Roma tem que enfrentar. Ao longo do tempo, as imagens serão gradualmente cobertas de camadas mais recentes de fuligem e fumaça produzida pelo trânsito sem lei da cidade e eventualmente vão desaparecer.
“Elas estarão em sua melhor fase dentro de dois anos e em seis anos deverão parecer fantasmagóricas. Depende se haverá muitas pichações e trepadeiras”, previu Kentridge.