No mundo todo, um bilhão de pessoas moram em casas com condições precárias. Outras 100 milhões não têm nem isso: vivem nas ruas. A estimativa é da Organização das Nações Unidas (ONU), que considera o tema uma crise global. É um fenômeno que cresce de forma generalizada, em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, em crise ou prósperos, alerta a relatora especial do Direito à Moradia, Leilani Farha, em documento publicado neste ano. Algumas cidades resolveram ousar e apostar em políticas de moradia como pontapé inicial para resolver o problema – mesmo diante de uma tendência de criminalização dessa população em muitos lugares. A ideia surgiu nos Estados Unidos e aos poucos ganha adeptos ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
O estado de Utah, no Oeste dos Estados Unidos, adotou o “housing first” como modelo em 2005. A meta era eliminar, em dez anos, os moradores de rua “crônicos”, que vivem nesta situação há mais de um ano ou que estiveram nas ruas em quatro oportunidades nos três anos anteriores. A queda foi de 91%, de 1.964 para 168, em 2015.
A diferença para outros programas com foco em moradia são os pré-requisitos, praticamente nulos. O candidato não precisa provar estar sóbrio ou participar de um tratamento completo de saúde antes de entrar na casa. Acompanhamento do serviço social garante que isto aconteça depois da mudança. De US$ 19,2 mil, o estado passou a gastar US$ 7,8 mil por ano com estes moradores, segundo dados da Força-tarefa de Moradores de Rua de Utah. Na média, os moradores de rua crônicos custam de US$ 30 mil a US$ 50 mil ao ano.
Um estudo da Universidade da Carolina do Norte (UNC) avaliou a eficácia do programa “housing first” na comunidade de Moore Place, na cidade de Charlotte. Após dois anos, 81% dos inquilinos continuavam morando no local. Eram pessoas em situação crônica, com média de permanência na rua de sete anos. Cada um dos 85 apartamentos custa, anualmente, US$ 14 mil em aluguel. Os inquilinos contribuem com 30% de sua renda, seja ela qual for. O restante é dividido entre Estado e doações da comunidade.
O principal impacto da moradia na vida dessas pessoas detectado pelo estudo foi na área da saúde. O número de atendimentos na sala de emergência caiu em 81%, de dias no hospital em 62%, e as ligações para a emergência tiveram queda de 76%. Representa uma economia de US$ 2,4 milhões. O atendimento primário à saúde, por outro lado, cresceu 53%.
Apesar do relativo sucesso dos programas para moradores crônicos, o número total de pessoas em situação de rua continua a aumentar nestes estados e municípios. É que “o modelo housing first é específico para moradores de rua com alta necessidade de suporte, e o objetivo é oferecer a moradia sem nenhuma condição prévia”, explica Chloé Serme-Morin, oficial da Feantsa, federação que reúne todas as organizações que trabalham com o tema na Europa. O modelo não é universal, mas a eficácia é alta para este público.“Oito em cada 10 conseguem reduzir o uso de álcool e drogas, e apresentam melhoras em saúde mental, do corpo, e na integração social”.
O Habitat, da ONU, divulgou em 2013 relatório em que avaliou experiências piloto em cinco cidades da Europa. Tirando Budapeste, que reteve menos de 50% dos inscritos, Lisboa, Glasgow, Copenhagem e Amsterdã obtiveram taxas entre 79,4% (Lisboa) e 85,9% (Amsterdã). Embora as cidades tenham utilizado o “desejo de permanecer abrigado” como critério – o que pode ter excluído pessoas em risco ainda maior – o organismo considerou os números como prova do sucesso do modelo.
Política Nacional
No Brasil, o Ministério das Cidades considera, desde 2013, os moradores de rua como alvo prioritário do Minha Casa Minha Vida. Mas o programa faz uma série de exigências para seus beneficiários. Outras estratégias brasileiras também têm se aproximado do “housing first”, como o “Braços Abertos”, da prefeitura de São Paulo.
O programa atende usuários de álcool e drogas, com eixo na assistência social, na saúde e no trabalho. Na última etapa, é incluído o acesso à moradia. Coordenadora da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), Isabel Bueno, explica o beneficiário tem que se comprometer com o programa. Mas não há um sistema rígido de punição. Quem sofre uma recaída de álcool e drogas, por exemplo, não é expulso de forma automática. “Hoje já temos famílias morando em hotéis afastados da região central porque ela não quer fazer o uso e não quer estar ali [onde o acesso à substância química é fácil]”, conta Isabel.
Curitiba apostou nos “condomínios sociais”, que são como repúblicas para ex-moradores de rua. “São construídos em uma dinâmica em que eles participam da gestão da casa, elaboração de comida, partilha do quarto”, explica a superintendente de Planejamento da Fundação de Ação Social (FAS), Jucimeri Silveira. A ideia é ajudar as pessoas a reorganizarem suas vidas. Ao passo que as “regras de sociabilidade, de proteção ao outro e auto-cuidado” são recuperadas, o indivíduo ganha autonomia para se reinserir no mercado de trabalho, na comunidade e, no futuro, ter seu próprio espaço de moradia.