Brasília: exemplo de tudo o que não deve ser feito em uma “cidade para as pessoas”, segundo Gehl| Foto: Evaristo Sá/AFP

Era o ano de 1960 quando Jen Gehl pegou seu diploma em arquitetura na Real Academia de Belas Artes da Dinamarca. No mesmo ano nascia Brasília, fruto do sonho modernista de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Não por acaso Gehl, maior autoridade em vida na construção de “cidades habitáveis”, cita a capital brasileira como exemplo de tudo que deve ser evitado no planejamento urbano, com seus espaços segmentados, vias voltadas para carros, e espaços tão amplos que cerceiam a ocupação pública.

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A conclusão do arquiteto é simples: as cidades são das pessoas, e devem ser construídas para elas (como foi feito ao longo de séculos, até a chegada dos automóveis). Por isso devem ser compactas e voltadas para o pedestre, para a circulação de pessoas. Hoje, Gehl presta consultoria no mundo todo a cidades que tentam se redesenhar para priorizar o ser humano. Dessa experiência ele tirou cinco regras que, diz, podem ser seguidas por urbanistas de qualquer lugar do globo, que ele resumiu em entrevista ao site especializado Fast Co.Design.

1. Chega de gasolina barata

Dos anos 1950 para cá, a venda de gasolina barata orientou o planejamento das cidades. E criou um ciclo vicioso: pagando pouco na gasolina as pessoas conseguem morar no subúrbio; os centros das cidades ficam abandonados; assim os subúrbios ficam cada vez mais atrativos; a gasolina tem que continuar barata porque o sujeito mora longe; os centros urbanos ficam cada vez mais abandonados. E por aí vai. Além de esfacelar a região central, esse é um tipo de planejamento que faz, literalmente, mal para a saúde. Porque as pessoas tendem a ficar o dia todo sentadas em seus carros, escritórios e casas. Pior ainda quando o carro substitui até pequenas caminhadas, como até a farmácia, o mercado ou lanchonete da região.

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“Eu chamo isso de uma arquitetura para a gasolina barata. A partir do momento que não tiver gasolina o suficiente, ou que ela não for barata o suficiente, [morar no subúrbio] deixa de ser uma ideia inteligente. Recentemente li um artigo na revista médica Lancet dizendo que as pessoas que vivem nos subúrbios estavam com uma expectativa de vida menor do que a das pessoas que vivem em regiões centrais [nas cidades]. Porque quem vive centralmente caminha mais ao longo da vida do que os que vivem no subúrbio. Há uma relação direta entre o número de anos em que você vive bem e o local onde você mora. Ninguém sabia disso, ou pensou sobre isso, quando a gasolina barata e os carros acessíveis começaram a invadir a sociedade”, diz Gehl.

2. Priorize o espaço público, e não privado

A cidade não pode ser uma a mera soma de espaços individuais, interligados por ruas e meios de transporte. Também não basta tratar os espaços públicos como um luxo. Eles devem ser priorizados pelos planejadores. “Este é um aspecto fundamental de uma sociedade democrática: ter cidadãos que se encontram uns aos outros ao longo do dia, e que não veem pessoas diferentes apenas na televisão ou em telas”.

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O clima não pode ser desculpa para ficar em casa. Copenhage (capital da Dinamarca), por exemplo, é uma cidade que passa metade do ano com temperaturas próxima do zero e menos de quatro horas de sol por dia. Mesmo assim, quando decidiu tornar-se uma “metrópole para as pessoas”, em 2009 (com a consultoria de Gehl), a ocupação do espaço público foi eleita uma das prioridades. Conta o arquiteto que “é interessante ver os argumentos do conselho municipal: ‘nós temos que caminhar mais, passar mais tempos nos espaços públicos e sair mais de nossos casulos privados’.”

3. Cidades devem explorar os sentidos humanos

Se cada cidade é única, uma coisa todas elas têm em comum: são construídas por seres humanos. O fato de sermos uma única espécie é, para Gehl, o ingrediente que torna possível criar regras universais de urbanismo. “Uma boa cidade é construída em torno do corpo humano e dos sentidos humanos, de forma que você possa utilizar ao máximo a sua capacidade de se mover e experienciar”.

Cidades adensadas, por exemplo, permitem que as pessoas se desloquem em velocidade baixa. O que é bom. “Fomos criados como animais caminhantes, e nossos sensos se desenvolveram para movimentos lentos, a cerca de cinco quilômetros por hora”. Por outro lado, “por muito tempo nós quebramos todas essas regras para fazer os automóveis felizes”. Ele acredita que é hora de inverter essa lógica. “Em um lugar onde as pessoas estão caminhando a sensação é ótima. Os sentidos são usados muitíssimo bem. Olhe para Veneza. Agora, se você quer a experiência contrária, vá para Brasília.”

4. Torne o transporte mais acessível

Com o preço do solo cada vez mais caro, no mundo todo as populações de baixa renda são empurradas para longe dos centros urbanos, onde estão concentrados os empregos. Um transporte eficiente e acessível é imprescindível para promover a equidade social. A conta é simples: “Quanto mais longe você vai nas periferias, mais baixos são os salários e mais alta é a parcela de renda gasta para uma família se transportar”. As famílias ricas que moram em subúrbios afastados não enfrentam esse problema, já que os gastos com transporte consomem uma porção bem menor de suas rendas.

5. Acabe com os carros

Para ser acessível e eficiente para todos, o transporte tem que ser eficiente. E nada menos eficiente do que um automóvel. Por isso Gehl propõe uma solução simples: acabar com os carros. “Não é segredo para ninguém que os bons tempos dos carros estão acabados”.

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“Em 2009 nós assistimos ao pico dos automóveis ao redor do mundo, e sua falência. Não é, de forma alguma, a forma mais inteligente de transporte para a população de uma cidade de 10, 20 milhões de habitantes, como são as da América do Sul, África e Ásia.”.Ele cita o exemplo de Cingapura. Simplesmente não há mais espaço para construir novas rodovias no país-ilha. Mas, como a cidade é muito adensada, é possível fazer praticamente qualquer coisa a pé ou de bicicleta.

“Os carros são restos de outro tempo. E toda essa ideia de carros autônomos não vai resolver o problema da falta espaço e de ruas mais amigáveis”, diz o arquiteto. “Carro era uma coisa boa lá no Velho Oeste da Detroit de 1905.” Símbolo da era automobilística, a cidade norte-americana hoje vive um semiabandono. Perdeu mais da metade de seus moradores, dos anos 1950 para cá, e chegou a declarar falência no auge da recente crise financeira dos EUA, em 2013.