À primeira vista, o cartaz acima parece um anúncio de mau gosto de algum aplicativo de caronas. “Quando você dirige sozinho, você dirige com Hitler. Entre já para um clube de carros compartilhados”, diz o texto, em inglês. É considerado ruim porque há um consenso atual de que um argumento que apela para Adolf Hitler é irresponsável com aqueles povos que sofreram nas mãos do nazismo. Só que o cartaz não é novo. Ele integra uma série produzida pelo governo dos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, para incentivar o compartilhamento de carros e a redução no uso do automóvel.
São ideias da década de 1940, mas que estão em sintonia com tendências bastante atuais. Com a concentração da população mundial no espaço urbano, e em cidades cada vez maiores em tamanho, analistas de diferentes áreas indicam que é preciso aproveitar melhor os recursos naturais. A deputada norueguesa Ida Auken recentemente defendeu que carros, casas e até roupas vão ser compartilhados, até 2030. Daí a ideia de limitar o uso do carro em três frentes: tornando as cidades mais compactas (o que facilita até para andar a pé), investindo no transporte coletivo e compartilhando os carros individuais. Por causa disso, muita gente enxerga aplicativos como o Uber como uma solução para pelo menos uma parte do problema.
Mas onde foi que essas ideias se perderam nestes 70 anos desde a Segunda Guerra? A historiadora Sarah Frohardt-Lane, da Universidade de Ripon, no Wisconsin (EUA), estudou as propagandas automobilísticas do período, e explicou à Gazeta do Povo que o tema foi tratado como uma escassez de guerra. Um “sacrifício” a ser feito “em nome da pátria”; logo não havia necessidade de seguir nesta mesma lógica após o fim do conflito, em 1945.
O centro da questão está na escassez da borracha. “O Japão tomou conta da maior parte do estoque de borracha que abastecia os EUA”, e o objetivo do governo era “reduzir drasticamente o uso civil da borracha para liberar o estoque (já limitado) para os militares”. Para isso, a saída foi impedir ao máximo o uso do automóvel, para evitar que as pessoas gastassem os pneus do carro e precisassem trocá-los por novos.
Houve até racionamento de gasolina, embora o combustível não estivesse em falta. A ideia era deixar o carro na garagem para que as rodas não gastassem – e assim não seria preciso trocar os pneus). Outra forma foi incentivar o compartilhamento de carros, em um modelo estilo “carona solidária”.
Cinco pessoas que moram próximas e trabalham na mesma área, por exemplo. O governo dos Estados Unidos propôs que, a cada semana, um vizinho fosse o motorista da rodada. Na semana seguinte troca, e assim sucessivamente, em esquema de rodízio. Uma curiosidade é que as mulheres também foram incentivadas a andar a pé, para “melhorar sua silhueta”, enquanto para os homens a ideia de caminhar foi tratada como um fardo pela propaganda da época.
Por coincidência, foi justamente após a guerra que o carro começou a tomar conta das cidades ao redor do mundo. Em um processo liderado pelos Estados Unidos, e que levou à lógica de um veículo por habitante que hoje entra em colapso e desafia os planejadores urbanos.
“Em parte porque o programa dos carros compartilhados nunca foi tão popular quanto o governo pretendia”, explica a historiadora Sarah Frohardt-Lane. Além disso, o período de guerra, no lugar de mostrar aos norte-americanos a necessidade de depender menos de recursos naturais e investir no transporte público, por exemplo, “reforçou, na cabeça das pessoas, a ideia de que o carro é essencial para o dia a dia”.
“No espectro dos sacrifícios de guerra, o compartilhamento de carros era visto como um sacrifício dos proprietários; a propaganda incentivou as pessoas a verem como um dever patriótico”. Daí o pôster notável indicando que dirigir sozinho seria o equivalente a ajudar Hitler a vencer a guerra. A liberdade de poder dirigir ilimitadamente, por outro lado, seria uma espécie de recompensa no pós-guerra.
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