Curitiba ganhou fama no mundo todo como o local onde o urbanismo “deu certo”. Reza a lenda que o cidade foi planejada nos anos 1960, quando tudo ainda era mato, e que bastou assumir um “prefeito arquiteto” para as ideias saírem do papel. Na prática, não foi assim tão simples. Com lançamento na noite desta segunda-feira (23), o livro Curitiba: o Fazimento de uma Cidade conta os bastidores deste processo fruto da pesquisa do jornalista Marcelo Oikawa e do arquiteto e urbanista Rafael Dely. Morto em 2007, aos 67 anos, Dely foi presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) em duas ocasiões (entre 1972 e 1975 e em 1994). É ele quem narra a história, que começa nos anos 1960, mas transita do século 17, na fundação de Curitiba, até os dias de hoje, com sugestões e ideias para o futuro da cidade. A decisão de colocar o texto em primeira pessoa foi de Oikawa, para homenagear o amigo, mas também para dar um tom de papo informal ao texto. Com o relato corroborado por referências bibliográficas (muitas delas da própria biblioteca do Ippuc), a obra pretende contar história do urbanismo de Curitiba para leigos. Mas sem perder a precisão técnica. A Gazeta do Povo conversou com Marcelo Oikawa à respeito.
A ideia de “fazimento” da cidade significa o processo de tirar do papel aquilo que está em um plano?
A ideia é de que a cidade é um organismo vivo. A cidade não é uma obra exclusivamente de engenharia. Para praticar urbanismo você tem que levar em consideração condicionantes socioeconômicas, políticas. Daí o porquê do fazimento. A palavra fazimento é como se fosse uma receita que você adiciona ingredientes para ter um resultado.
Curitiba contratou um plano de urbanismo nos anos 1960, mas foi a equipe do Ippuc que o implantou.
Na hora que o pessoal pegou o plano preliminar de 1965 e começou a estudar ele, começaram a ter diversas dúvidas, que você vai ver no livro. Uma delas é a seguinte. Se você cria somente vias de ligação entre o centro da cidade e os bairros, não está garantindo [que vai] interromper o adensamento no centro da cidade. O problema persiste. Daí a sacada do Dely de fazer o eixo estrutural, porque você cria condição de que a cidade vá crescendo ao longo das estruturais.
Foi dele a ideia de um sistema trinário para estas estruturais?
Quando o Jorge Wilheim ganhou a concorrência para montar o plano [preliminar de urbanismo] em 1965, ele previa vias de ligação do Centro em direção ao bairro. Mas eram só vias de ligação, mais nada. A grande sacada do Dely foi inventar o sistema trinário, que é um eixo de desenvolvimento. Induz o crescimento ordenado do centro da cidade em direção aos centros dos bairros. Para não haver desapropriações, não demolir a memória histórica da cidade, ele aproveitou uma rua, fez a pista de rolamento central por onde passam os ônibus, passa polícia, passa ambulância [e deixou as ruas laterais para os carros]. De todas as providências tomadas em Curitiba, a do sistema trinário foi a mais importante de todas. Foi ela que viabilizou toda a aplicação da criatividade deles [do Ippuc] nas outras coisas, depois. O Dely foi quem pensou isso.
O livro traz uma história clássica, de que o Jaime Lerner “bateu na mesa” para fazer o calçadão da Rua XV em um fim de semana
Na verdade eles diziam que precisavam, no início, mostrar para a população alguma coisa muito diferente, de maneira que isso pudesse mandar um recado para a cidade. E a decisão de fechar a Rua XV de Novembro foi muito interessante. O Lerner fala que esse fechamento foi um recado de que, na cidade, as pessoas são mais importantes. E não o carro.
Aliás, o Dely muitas vezes é conhecido como “braço direito do Lerner”. É uma alcunha justa?
Eu acho que o Lerner foi e é ainda o líder do grupo. Agora, junto com ele existem três pessoas que foram essenciais para o sucesso de tudo que foi feito aqui. Uma é o Rafael Dely. O Nicolau Klüppel [idealizador dos parques de Curitiba] é outra. Ele dizia que no início era um engenheiro sanitarista que achava que, para conter a enchente, tinha que canalizar o rio. Isso é uma agressão. O Centro de Curitiba antigamente toda vez que chovia, alagava. O Klüppel contava que se você estava em uma matinê de cinema, quando vinha a chuva eles interrompiam a projeção e punham na tela “levante os pés que lá vem a água”. Era assim Curitiba antigamente.
E a terceira pessoa?
O [arquiteto Carlos] Ceneviva, que é especialista em transporte. Quando se decidiu fazer um estudo do sistema de transporte que Curitiba ia desenvolver para o sistema trinário, o Dely chamou o Ceneviva, que não era do Ippuc. E eles desenvolveram este sistema de transporte.
Não tinham nem chassi de ônibus que se adequasse ao projeto deles?
Os ônibus no Brasil inteiro eram feitos com chassi de caminhão. Para você subir num ônibus naquela época tinha que levantar muito sua perna. Aqui em Curitiba foi a primeira vez que se desenvolveu um estudo para um chassi exclusivamente para ônibus. Você vai ver no livro que o processo é bem complicado e demorado. Se contratou uma empresa na Inglaterra e não deu certo, no rio Grande do Sul e não deu certo, na Bahia e não deu certo. Até que eles chegaram ao desenho da maneira que eles queriam.
O livro tem ainda uma teoria sobre como o planejamento se relaciona com a história do curitibano
O planejamento não é uma novidade implantada pelo grupo do Jaime Lerner. A cidade já vinha com uma tradição desde o plano Agache, de 1940 e poucos [plano de urbanismo de Curitiba, de 1943]. Mas já no início de Curitiba teve um projeto de planejamento urbano, quando o cacique Tingui escolheu o Largo da Ordem para o pessoal se estabelecer. Curitiba sempre foi uma cidade isolada no Sul. Então os habitantes daqui, que eram muito pobres, sempre souberem que eles teriam que ir atrás das soluções. Em todos os momentos importantes da história de Curitiba, o curitibano não podia esperar que alguém viria de fora ajudar, ele teria que achar seu próprio caminho.
Você diz que este livro não olha só para o passado, mas para a Curitiba do futuro. Por quê?
É a tese é de que toda cidade tem que ser boa para todo mundo. Não pode ser boa só para uma parte. Um exemplo é uma das últimas coisas que o Dely fez, que é o transporte em Curitiba no fim de semana. Os ônibus ficavam parados nas garagens. As empresas passaram a cobrar um real a passagem, no domingo. E a população, em especial da periferia, começou a se deslocar. A empresa pode não ter lucro, mas se paga. Ele conseguiu fazer um cálculo econômico que interessasse as empresas de ônibus e ajudasse a população.