No sonho, caiu uma tempestade e Betsy Bekoalok viu o rio subir em um dos lados do vilarejo e o mar do outro, a água foi engolindo as casas de cores vivas, os barcos pesqueiros, as caminhonetes quatro por quatro, a escola e a clínica. Ela mergulhou na inundação, procurando freneticamente pelo filho. Cadáveres boiando passaram por ela na quase escuridão. Quando finalmente encontrou o menino, ele também estava morto. “Eu o peguei e o trouxe de volta do fundo do mar”, conta Betsy. O povo inupiat – que há séculos caça e pesca na costa ocidental do Alasca – acredita que alguns sonhos são presságios do futuro. Mas aqui em Shaktoolik, não é preciso ser profeta para prever uma inundação, ainda mais durante as tempestades do outono.
Assentada em um estreito braço de areia entre o Rio Tagoomenik e o mar de Bering, o vilarejo de 250 habitantes está enfrentando uma ameaça iminente graças ao aumento da inundação e da erosão, sinais de um clima em mudança. Com sua proximidade com o Ártico, o Alasca está esquentando cerca de duas vezes mais rápido do que o resto dos Estados Unidos, e o estado se encaminha para o ano mais quente de que se tem registro. O governo identificou que as mudanças climáticas ameaçam pelos menos 31 cidades, que correm risco iminente de destruição, com Shaktoolik listada entre as quatro mais ameaçadas. De acordo com especialistas na mudança climática, algumas vilas não serão habitáveis em 2050, com seus moradores juntando-se a um fluxo de refugiados do clima ao redor do globo, na Bolívia, na China e em Níger, entre outros países.
Essas comunidades alasquenses em perigo têm uma escolha. Elas podem se mudar para um terreno mais elevado, perspectiva dolorosa que, para um pequeno povoado, custaria US$ 200 milhões. Ou podem ficar onde estão, esperando encontrar dinheiro para fortificar suas construções e reforçar o litoral.
Dois vilarejos subindo a costa ocidental, Shishmaref e Kivalina, decidiram em votação se mudar quando e se encontrarem um local adequado e tiverem dinheiro para tanto. Um terceiro, Newtok no encharcado delta do Yukon-Kuskokwim mais ao sul, já deu os primeiros passos para a realocação.
Mas, passados anos de reuniões que não deram em nada e pedidos por suporte financeiro do governo que não foram atendidos, Shaktoolik decidiu que vai “ficar e se defender”, pelo menos por enquanto, afirma o prefeito, Eugene Asicksik. “Estamos fazendo as coisas por conta própria”, explica.
A próxima grande tempestade
O pequeno Cessna carregando dois visitantes toca levemente a pista de cascalho fino que serve de aeroporto em Shaktoolik. Estamos em meados de setembro [mês em que a reportagem visitou a região], e com o fim da temporada de pesca comercial, a vila se prepara para o inverno. Carne de alce cozinha no fogão da casa de Matilda Hardy, presidente da Câmara dos Vereadores do Vilarejo Nativo de Shaktoolik. Jean Mute, a esposa do pastor, se inclina para apanhar amoras para conserva em um campo ao lado da cidade.
Em Shaktoolik, bem como em outras vilas do estado, os moradores afirmam que o inverno está chegando mais tarde do que antes e se transformando prematuramente em primavera, uma alteração que os cientistas ligam às mudanças climáticas. Com a elevação da temperatura do mar, o gelo da costa e a neve semiderretida que geralmente protegem o povoado de tempestades e das fortes ondas marinhas estão se reduzindo. No inverno passado, pela primeira vez desde que os anciãos daqui conseguem se lembrar, não havia gelo ao largo do litoral.
O impacto das tempestades devorou a área ao redor da vila, que ocupa 2,8 quilômetros quadrados de uma faixa de terra de quatro quilômetros de extensão. Segundo estimativa, essa faixa está perdendo em média 3.540 metros quadrados – quase meio hectare – por ano. A inundação do mar e as águas caudalosas do rio se tornaram tão severas que a última grande tempestade quase transformou Shaktoolik em ilha.
“Isso foi bem assustador. Parecia que as ondas poderiam nos encobrir, mas, felizmente, não aconteceu”, conta Agnes Takak, assistente administrativa da escola do vilarejo.
Ficar ou sair de Shaktoolik
Como Shaktoolik e outros povoados ameaçados descobriram, tanto ir embora quanto ficar tem seus perigos. O processo de mudança pode demorar anos ou mesmo décadas. Enquanto isso, os moradores ainda precisam mandar os filhos para a escola, ir ao médico quando estiverem doentes, adutoras de água e tanques de combustível devem estar funcionando e é necessário dispor de um lugar seguro para ir quando chegar uma tempestade severa.
Mas poucas agências públicas estão dispostas a investir na manutenção de vilas ameaçadas pela erosão e pela inundação, ainda mais quando as comunidades pretendem levantar acampamento e ir para outro lugar. “É um impasse insolúvel”, afirma Sally Cox, coordenadora estadual dos vilarejos nativos.
O mero anúncio da intenção de transferência pode significar a negativa a um pedido de uma comunidade por financiamento. Anos atrás, quando Shaktoolik mencionou que tencionava se mudar em um pedido de verba, perdeu o dinheiro para sua clínica, afirma Isabel Jackson, servidora pública municipal.
Os líderes do vilarejo localizaram um possível ponto de relocação 18 quilômetros a sudeste, perto dos contrafortes das montanhas. Mas alguns moradores dizem temer que sua cultura, dependente da caça e da pesca, sofra com a mudança. E Edgar Jackson, ex-prefeito, conta que o governo recusou pedidos de verbas para construir uma estrada que serviria para levar material de construção para a casa nova e como rota de fuga. Atualmente, os moradores não contam com um caminho confiável para fugir rapidamente em caso de emergência.
“Nós chamamos de estrada de ‘evacuação’ e relocação’. Os governos estadual e federal não gostaram dessas duas palavras”, conta Jackson. Há 50 anos, quando a praia ficava a meio quilômetro de distância, a violência crescente do mar podia não incomodar os moradores de Shaktoolik. Agora, porém, o mar está quase em suas portas.
Barricada tenta proteger Shaktoolik
Certa feita, Matilda Hardy, a presidente da Câmara, podia ver o mar pela janela. Agora ela enxerga um bloqueio de dois metros de altura, com extensão de um quilômetro e meio, feito com madeira e cascalho pelos moradores para se proteger do oceano. Dois engenheiros do estado tiveram a ideia, mas ficaram sem dinheiro antes que o projeto fosse feito.
O prefeito, Asicksik, decidiu continuar mesmo assim. Moradores transportaram o cascalho da boca do rio em velhos caminhões militares, comprados por US$ 9 mil cada, e finalizaram o projeto em menos de quatro meses. Os residentes se orgulham da proteção. É um símbolo de sua determinação em resolver os próprios problemas sem a ajuda do governo.
Só que todos sabem que a barricada improvisada não passa de um tapa-buraco; alguns questionam se conseguirá segurar pelo menos uma grande tempestade. “Ela ainda não foi testada”, conta Matilda.
Em Kivalina e Shishmaref, o Corpo de Engenheiros conseguiu construir muros de pedras reforçados para proteger as vilas, autorizados pelo Congresso, em 2005, como gasto federal. Mas a autorização foi cancelada quatro anos depois, e o Corpo não pode fazer mais nada se os moradores não levantarem o dinheiro por conta própria.
O estado do Alasca – que no passado forneceu verbas para Newtok, permitindo que a comunidade y’upik começasse a atravessar o rio em busca de segurança – enfrenta uma crise fiscal, com a saúde econômica ligada à receita com petróleo. E um processo na justiça federal, movido por uma vila contra as empresas carboníferas e petrolíferas, buscando dinheiro para mudança como indenização pela poluição atmosférica, não deu em nada.
Shaktoolik deve receber US$ 1 milhão da Comissão Denali, agência federal independente criada em 1998 para ajudar a fornecer serviços a comunidades rurais do Alasca. Mas o dinheiro não resolverá tudo – algumas terão de pagar por um novo projeto de fortificação das defesas enquanto o resto é destinado a ajudar a proteger o tanque de armazenamento de combustível.
Talvez a maior contribuição potencial para salvar a vila das mudanças climáticas sejam os US$ 400 milhões destinados à transferência de vilarejos ameaçados, previstos na proposta de orçamento de 2017, pelo governo Obama. Só que com o novo governo, o destino da realocação é incerto, na melhor das hipóteses.
“Queria que eles viessem e passassem um dia em uma das nossas tempestades”, afirma Axel Jackson, membro da Câmara dos Vereadores, a respeito dos políticos na capital norte-americana. O governo federal gasta bilhões em guerras em outros países, afirma ele. “Mas ainda nos trata como se fôssemos um país do terceiro mundo.”