Quase um milhão de turistas devem desembarcar no Rio de Janeiro para as Olimpíadas, nas próximas semanas. A preocupação que consome neurônios dos governantes é se a cidade vai dar conta de hospedar seus visitantes com qualidade, em meio ao medo do zika vírus e do terrorismo. Para os cariocas, a maior preocupação é com a cidade que ficará após os jogos. Enquanto as atenções esportivas se voltam para a Vila Olímpica, na Zona Oeste da cidade, o “Porto Maravilha”, no Centro da cidade, com seus erros e acertos, é uma vitrine de como poder público e iniciativa privada podem se juntar para fazer mais do que uma obra pública. Além do Rio, São Paulo e Curitiba têm experiências similares (leia mais sobre isso). E em todas, o desafio é aproveitar o potencial de investimento do setor privado sem que isso implique em prejudicar as populações mais vulneráveis, que muitas vezes vivem e convivem na região a ser impactada.
A readequação da região portuária no Rio de Janeiro é um sonho antigo. A área começou a ficar obsoleta nos anos 1950, quando outros terminais portuários do país começaram a operar sistemas de contêineres, desviando o fluxo de cargas do Rio. As administrações falam em readequação desde os anos 1980. Mas só em 2011 o projeto saiu do papel, quando a prefeitura transformou uma área de cinco milhões de metros quadrados na “operação urbana porto maravilha”.
São Paulo e Curitiba: diferentes modelos de operação consorciada urbana
Leia a matéria completaA operação urbana consorciada (OUC) é um instrumento previsto no Estatuto das Cidades para desenvolver uma determinada região da cidade (entenda o instrumento no infográfico). O perímetro é definido em lei, assim como as intervenções a serem realizadas nele (uma obra viária, a construção de um equipamento público, etc). A operação também pode flexibilizar o limite de ocupação do solo. Um terreno que só poderia ter 100 metros quadrados construídos passa a permitir 500, por exemplo. Para construir neste espaço excedente, o construtor deve adquirir títulos de potencial construtivo (os Cepacs), que o município comercializa na bolsa de valores. A venda dos títulos, por sua vez, permite ao município ganhar dinheiro para investir nas obras prometidas na região. Feitas as “melhorias”, o setor privado tem maior interesse em continuar comprando Cepacs e investir, o que constrói um ciclo virtuoso.
No Porto Maravilha, muita coisa contou a favor. A região é colada ao Centro e tem forte valor histórico. Ficam ali o Cais do Valongo (rota da escravidão e local de chegada da família real portuguesa ao Brasil) e o Quilombo da Pedra do Sal (berço do samba), para dar dois exemplos. Além disso, todos os 6,4 milhões de títulos de potencial construtivo foram vendidos de uma vez, já em 2011, a um único comprador: a Caixa Econômica Federal (CEF), que arrematou os Cepacs por R$ 3,5 bilhões, pagos com dinheiro do FGTS. A cidade contou ainda com a “boa vontade” dos governos estadual e federal, que cederam terrenos para a operação, como explica a pesquisadora do Observatório das Metrópoles Mariana Werneck, que estudou os arranjos financeiros e administrativos do Porto.
Para o presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), criada especificamente para administrar a área, Alberto Gomes Silva, o diferencial carioca foi ter um “plano de requalificação” estruturado desde a aprovação da lei, em que foi informado “para a cidade e o mercado que o processo teria início, meio e fim”, o que dá segurança para o investidor comprar os títulos. Ele acredita que, não fosse a Caixa, outro investidor teria comprado os títulos.
Cidade para quem
Especialistas em urbanismos alertam para um risco inerente à melhoria de uma região: a substituição da população que vive ali por outra de classe socioeconômica mais alta. Seja por despejos ou pelo aumento do preço do aluguel (a chamada “remoção branca”). Na região do Porto Maravilha, o Comitê Popular Copa e Olimpíadas (organização que monitora o impacto dos megaeventos à população carioca) estima 22 mil famílias removidas ou ameaçadas de remoção no Rio de Janeiro entre 2009 e 2015, com base em dados divulgados pela prefeitura.
“Ocupações irregulares [na área do porto] foram removidas para a Zona Oeste a 60, 70 quilômetros de distância [do Centro], para bairros super pobres em infraestrutura, sem rede de saneamento. A gente diz que ganharam uma casa para perder a cidade. Outros recebem auxílio aluguel de R$ 400 ao mês”, argumenta Mariana.
O medo dos despejos não se confirma na região do porto, na avaliação do presidente da Cdurp. “As pessoas continuam vivendo aqui e boa parte melhor do que antes, graças aos recursos da operação que pagam limpeza, coleta de lixo. Há um incentivo para que os moradores fiquem na região, com o perdão de dívidas passadas de IPTU e isenção pelos próximos dez anos”. Além disso, o município utilizou verba da operação urbana para regularizar áreas ocupadas e assumiu o compromisso de construir 10 mil habitações de interesse popular em um prazo de dez anos, dando preferência às pessoas que trabalham na região, explica Silva.
Por outro lado, para atrair o dinheiro privado – tanto para comprar Cepacs quanto para construir na região – a região deve ser vista como lucrativa, para o empresariado. Para o arquiteto Alexandre Pedrozo, a chave para equilibrar esta equação está no diálogo. A população deve ser ouvida desde o momento da concepção da operação, e cabe ao poder público equilibrar interesses. A criação de instrumentos próprios é o que garante que este diálogo não desbanque em emperramento burocrático.