A cidade nunca superou de verdade a destruição de Les Halles. Num espasmo mórbido de renovação urbana na década de 1970, o imponente mercado de aço e vidro do século 19, em estilo Liberty, que já foi o coração pulsante da cidade, deu lugar a um claustrofóbico centro de compras subterrâneo e frágeis pavilhões no nível da rua. Os urbanistas nunca foram perdoados por um erro que quase imediatamente entrou para o rol de grandes asneiras arquitetônicas, ao lado da destruição da antiga estação Pensilvânia, em Nova York.
Desde então, toda tentativa parisiense de curar a ferida indisfarçável parecia somente chamar mais atenção ao pecado original. Agora surge o mais recente remédio (veja as fotos), batizado de La Canopée (algo como “A Copa”, numa referência à copa e uma floresta) e no formato de um gigantesco guarda-chuva curvo metálico elevando-se 22 metros acima do que já foi a essência não apenas do coração de Paris, mas também sua alma e estômago. Ele também já provocou lamentos pelo que não mais existe lá.
Mas, talvez – e somente talvez após mais de quatro décadas de tentativas e erros sombrios –, La Canopée possa oferecer algo a mais para o ponto mais abusado da zona central da capital francesa.
Três semanas após a ansiosa inauguração oficial – “nós tínhamos de consertar este lugar avariado”, disse a prefeita de Paris, Anne Hidalgo – e cinco anos após o início da construção, o elogio dos parisienses céticos se parece com o rosto que a cidade oferece ao mundo: reservada e crítica, mas não receptiva.
Pelo menos eles estão aprendendo a viver com a coisa, ainda que seja pelo motivo de que ela vai continuar ali. “Hmm, mais ou menos”, disse François Jouslin de Noray, que passeava com a esposa, um casal aposentado desfrutando uma tarde ensolarada, ainda que úmida. “Não gostei da cor. O interessante é ser parcialmente aberto, mas não por inteiro. Já a cor...” “Mas eu gostei do formato”, ele concluiu.
Os observadores pareciam aturdidos pela escala grandiosa da estrutura num momento de redução dos gastos públicos – sete mil toneladas de aço e 18 mil placas de vidro, a um custo de US$ 269 milhões pela estrutura, mais US$ 450 mil anuais pela sua manutenção. É do tamanho da histórica Place des Vosges no vizinho bairro do Marais.
A ambição foi uma medida de “todos os massacres” que aconteceram no local, nas palavras de Bertrand Delanoe, ex-prefeito em cuja gestão o projeto foi concebido.
O primeiro foi em agosto de 1971, quando o presidente Georges Pompidou se aproveitou das férias de verão dos parisienses para começar a demolir a estrutura projetada pelo famoso arquiteto Victor Baltard, num local que servira como o célebre mercado da cidade por oito séculos. “É impossível se consolar pela morte estúpida deste local”, escreveu o historiador Eric Hazan em um livro sobre a história da cidade.
Predominava a sensação de alívio de que nada pior fora imposto.
“Não me desagrada. É mais interessante do que o que havia antes”, disse Serge Aubignat, bancário aposentado, olhando La Canopée de um ponto de observação. “De qualquer forma, teremos de nos contentar com isso.”
Milhares de pessoas já fizeram isso. Uma imensa multidão nos tons do arco-íris, afluentes de várias linhas de trem suburbano convergindo para o centro de compras abaixo de La Canopée, brotava abaixo dela em uma tarde recente.
Dúvidas quanto à capacidade da França de entreter um futuro multicultural são momentaneamente suprimidas num dos espaços de maior mistura racial da capital.
Cerca de 750 mil pessoas passam pelo centro de trânsito todo dia. A multidão multiétnica não parecia estar oprimida por uma estrutura já esmiuçada pela imprensa francesa e europeia, suspeita de qualquer empreendimento com matiz comercial.
Na verdade, as coberturas de vidro de La Canopée abrigam uma série de restaurantes de luxo – o chefe Alain Ducasse foi mencionado – e as lojas, Nike, Lego e Sephora.
A prefeitura vai instalar um conservatório musical, um centro de hip-hop, uma biblioteca, espaços de ensaio e outras estruturas públicas para reduzir as dúvidas quanto à vocação comercial de La Canopée.
Mas a associação amigos do bairro não se convenceu. “Inauguração com sabor amargo” foi o título de seu boletim interno.
“A coisa tem uma escala faraônica”, disse com desaprovação Gilles Pourbaix, um dos líderes da entidade. “É um templo do comércio. Uma cobertura monstruosa de aço. Não teria problemas perto de uma rodovia, mas no meio de Paris?”
Já a sensação de amplidão sob La Canopée ajudou a reduzir a densidade da área lotada. As extremidades da estrutura são abertas. m lado se volta para o panorama do céu, a imponente igreja de Santo Eustáquio, do século XVI, e a circular Bolsa do Comércio – o jardim planejado entre eles ainda não foi concluído. O outro lado dá para a fachada de prédios residenciais e comerciais da Rua Pierre Lescot.
As 15 “folhas” de vidro transparente de La Canopée são abertas, deixando passar luz e sol. Sua combinação de linhas verticais e curvas onduladas humanizam a estrutura maciça, bem como o formato irregular de onda.
As grossas vigas de aço não lembram a graciosa estrutura de ferro de Baltard do Les Halles original. Porém, numa cidade onde a beleza e a uniformidade arquitetônica produziram um catálogo de acréscimos modernos duvidosos ou deploráveis – o invasivo arranha-céu Tour Montparnasse, a ópera informe Bastille ou o frio bairro comercial La Défense –, a guinada suave de La Canopée pareceu pelo menos ter encontrado um favor silencioso.
Ainda que a descrição oficial tenha provocado risos – “como uma folha imensa ondulando na altura da copa das árvores, num envelope fluído, leve e translúcido” –, a aprovação superou a desaprovação, pelo menos entre os visitantes comuns. “Não é feio”, disse Alain Urbain, que estava ali com a esposa, Caroline, para dar uma olhada. “As curvas são agradáveis. E não é muito agressivo.”
A luz solar produz um belo e misterioso efeito amarelado, mas quando as nuvens escondem o sol, a estrutura parece tocada pela poluição parisiense. A cor, não o formato, é o aspecto mais polêmico. “A cor não ajuda”, disse uma visitante, Andrée Gasco. “Parece urina”, disse seu marido, Bernard, advogado aposentado.
Gasco conheceu o antigo mercado e não conseguiu esconder um lamento. “Nós fomos ao antigo mercado de flores” quando o Les Halles foi abandonado, quase 50 anos atrás. “Todo mundo estava chorando.”
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