O centro comunitário Digua Shequ, em Pequim, é pintado em tons pastel e enfeitado com dragões de papel coloridos pendurados no teto. Em seu interior existe um salão de cabeleireiro, um café e uma academia de ginástica – estabelecimentos comuns em qualquer bairro, a não ser pelo fato de que todos ficam debaixo da terra. As fachadas ficam todas dois andares abaixo do nível da rua, construídas no interior de um antigo abrigo antibombas projetado para resistir a uma guerra nuclear.
A Digua Shequ, uma startup que transforma porões sem uso em centros comunitários e cujo nome em chinês significa “Comunidade da Batata Doce”, começou a reforma do abrigo no nordeste de Pequim há um ano. A empresa quer reimaginar o futuro dos espaços subterrâneos da cidade, ignorados durante muito tempo, mas agora disputados pelo governo, pelo comércio e por artistas.
O fundador do centro, Zhou Zishu, antigo designer do Museu Nacional da China, afirmou que se inspirou no debate sobre o que fazer com os antigos abrigos antibombas de Pequim, capazes de abrigar mais de cem mil pessoas. “Nosso trabalho não se resume a renovar áreas subterrâneas e torná-las mais agradáveis. O que queremos é melhorar a vida das pessoas e criar um novo senso de comunidade. Queremos usar esses espaços privados e torná-los públicos outra vez”, afirmou Zhou. Contudo, nem todo mundo concorda com a visão do Digua Shequ. O destino incerto dos abrigos, assim como as regras para seu uso, atraíram a atenção de inúmeros concorrentes.
Os mais de 10 mil bunkers de concreto de Pequim, construídos 40 anos atrás, eram parte central da estratégia de defesa de Mao durante a Guerra Fria. Alguns dos bunkers, que foram transferidos para as organizações de bairro nos anos 1980, quando a economia do país foi liberalizada, se transformaram em lojas e escritórios. A maioria foi convertida em espaços habitáveis alugados para trabalhadores migrantes ou pessoas que tentavam fugir dos aumentos constantes no valor dos aluguéis na cidade.
A imprensa apelidou esses moradores do subterrâneo de “tribo dos ratos” e os abrigos ganharam a reputação de ser lugares abandonados. Em 2010, Pequim anunciou que seu uso residencial passaria a ser ilegal a partir do fim de 2012, embora o prazo tenha sido estendido para 2017.
Uma das principais questões na cidade é o que fazer com todas as pessoas que continuam a viver nos bunkers. Estima-se que o número varie entre 150 mil e 1 milhão de pessoas. Quase todos os prédios de apartamento do bairro onde fica o Digua Shequ contam com um abrigo ou algum tipo de porão. A maioria das unidades residenciais são alugadas por valores que vão de 500 a 900 yuans, ou cerca de US$77 a US$138 – um terço dos valores cobrados acima da superfície.
“O salário dos trabalhadores não está crescendo tão rápido quanto o custo de vida. Se nos livrarmos desses apartamentos subterrâneos, onde vão viver todos os imigrantes?”, falou Xu Tong, que aluga e vive em um espaço subterrâneo no leste de Pequim.
Os dados do governo mostram que os salários dos trabalhadores migrantes aumentaram cerca de 14 por cento em 2014, comparado ao ano anterior. Entretanto, o aumento no custo de vida no mesmo período foi de 22 por cento. O contrato de aluguel de Xu mostra como as pessoas não estão certas sobre a seriedade da proibição: embora a nova regra entre em ação em 2017, seu contrato é válido até o fim de 2019.
Até o momento, os trabalhos no Digua Shequ continuam a ser um exemplo excepcional, já que o centro conseguiu reaproveitar legalmente os espaços subterrâneos de acordo com as novas regras. Atualmente, o Departamento de Defesa Aérea Civil de Pequim fecha contratos de aluguel de no máximo um ano para pessoas e empresas que desejam ocupar espaços em antigos abrigos antiaéreos.
A ordem de acabar com o uso residencial significa que algumas pessoas irão perder suas fontes de renda, já que poucas autoridades locais e proprietários estão dispostos a gastar dinheiro para transformar as unidades em espaços comerciais. Como resultado, muitos abrigos e porões ocupados antes que a proibição fosse anunciada ainda estão sendo alugados para moradia.
“É como uma onda. Você só precisa mergulhar e esperar ela passar”, afirmou Wang Jinhui, gerente de um hotel em um antigo abrigo antiaéreo próximo ao centro Digua Shequ.
Ele aluga o espaço desde 1998 e acredita que o poder público vai deixar de ter a boa vontade política necessária para controlar o uso desses espaços.
“Já faz anos que eles dizem que vão limpar o subterrâneo, mas até agora não conseguiram. É bem provável que lugares como o meu sobrevivam”, afirmou Wang.
Sublocar espaços subterrâneos pode ser bastante lucrativo. O aluguel de um porão ou de um abrigo geralmente custa 150 mil yuans ao ano, mas a subdivisão do espaço pode gerar muito mais dinheiro. O abrigo ocupado pelo centro Digua Shequ já abrigou mais de cem moradores que, ao todo, pagavam cerca de 600 mil yuans ao ano, afirmou Zhou.
“Muitos proprietários gastam dinheiro reformando os espaços que alugam, por isso não querem deixar de alugar os porões”, afirmou Guo Chengbao, segurança que já foi locador de uma área subterrânea. Atualmente, ele vive em uma unidade subterrânea que fica logo acima do centro Digua Shequ.
Investidores privados também estão de olho nos espaços subterrâneos. Reformar o porão que abriga atualmente o centro Digua Shequ custou cerca de 3 milhões de yuans, em grande parte financiados por Feng Lun, fundador da Vantone Holdings e sua subsidiária imobiliária, a Vantone Real Estate.
Em uma entrevista com Zhou para a série online “Wind Horse Cow”, produzida por Feng, o fundador da Vantone explicou seu interesse no projeto.
“Nós construímos muitos prédios, mas atualmente não há ninguém operando espaços subterrâneos como esse. Se outras construtoras vêm até o seu espaço, elas podem convidá-lo a desenvolver outras áreas subterrâneas durante a construção”.
Feng não atendeu a um pedido de entrevista para esta reportagem.
Zhou contou que os apartamentos subterrâneos talvez nunca sejam eliminados, em vista dos diferentes interesses em jogo, mas espera que o modelo do centro Digua Shequ seja replicado em outros bairros. Ele conta que viu uma chance de transcender as diferenças de classe e origem social.
Guo, o segurança, gostou do que viu até agora. Depois do trabalho, ele costuma jantar no espaço comunitário.
“Vivo em Pequim há 14 anos. Antes, não conhecia ninguém que vivia na superfície. Agora todos nos conhecemos bem”, afirmou rindo.