Em discurso no Departamento de Segurança Nacional na última quarta-feira (25), o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alardeou que as chamadas cidades-santuário do país, como Washington, Chicago e Los Angeles, estão causando um “mal imensurável” à segurança nacional ao se recusarem a ajudar o governo federal a identificar e deportar residentes irregulares. As cidades-santuário dos EUA são isso mesmo, cidades que, ao longo das últimas décadas, decidiram não manter uma cooperação irrestrita com as autoridades federais quando o assunto é imigrantes.
Ainda na quarta-feira (25), Trump determinou que o Departamento de Segurança Interna encontre meios de limitar “fundos federais, com exceção daqueles obrigatórios por lei” às cidades-santuário – num recado claro aos executivos e aos procuradores municipais país afora que ainda estão resistentes aos objetivos do novo presidente. Mas é mais fácil falar do que fazer.
Especialistas sobre imigração dizem que Trump pode esbarrar em obstáculos constitucionais, geográficos e legais ao tentar forçar as cidades-santuário a obedecê-lo.
Primeiro, o desafio geográfico. Trump poderia deixar a tarefa de “fechar” essas cidades para os estados. Os republicanos controlam o executivo e as assembleias em 25 estados. Em dezembro do ano passado, o Texas introduziu uma lei para cortar verbas para cidades-santuário. Isso aconteceu na esteira da Carolina do Norte, que, em 2015, foi o primeiro estado a “banir” essas cidades.
Neste mês, o governador do Texas Greg Abbott acirrou as discussões com a nova xerife do condado de Travis, ameaçando cortar US$ 1,8 milhão em verbas estaduais para o seu departamento se ela não concordar em cooperar com pedidos relativos à política de deportação.
Abbot disse no Twitter: “Sim. Eu vou assinar uma lei que ‘bane’ as cidades-santuário. Eu também já encaminhei uma ordem para cortar as verbas para cidades-santuário.”
Mas, com exceção da Carolina do Norte e do Texas, especialistas em imigração têm tido dificuldade em apontar onde mais um movimento similar pode ganhar força. A maioria das cidades que deixam a cargo das autoridades locais a decisão de entregar imigrantes ao governo federal para deportação são de estados controlados por democratas.
“ Muitos dos outros estados republicanos não possuem cidades grandes ou um grande número de imigrantes, então esta realmente não chega a ser uma questão para esses estados”, diz Alex Nowrasteh, uma analista política de imigração do liberal Instituto Cato. Há alguns anos, uma lei aprovada no Texas falhou em ser respeitada, em parte porque não havia nenhuma cidade-santuário para ser punida à epoca.
Trump e as cidades-santuário no Congresso
Trump também poderia simplesmente enviar ao Congresso uma proposta de lei cortando verbas para as cidades-santuário. Mas essas cidades jamais foram uma prioridade para a liderança republicana na Casa, que parece estar muito mais focada em questões como desconstruir o Obamacare ou encaminhar a reforma tributária (ou ainda, quando o assunto é imigração, na segurança das fronteiras).
Além disso, os senadores democratas já bloquearam duas iniciativas semelhantes no Congresso nos dois últimos anos, incluindo uma apresentada logo depois do caso de Kate Steinle, uma mulher de 32 anos de idade que foi baleada e morta por um imigrante ilegal que já havia sido deportado cinco vezes antes do ocorrido. Ou seja, menos diante de uma comoção nacional, a iniciativa não passou.
Naquela ocasião, o líder da minoria Harry Reid, do distrito de Nevada, chamou a iniciativa de dogwhistlepolitics, dando a entender que era uma ideia que buscava apenas agradar a uma parcela da sociedade, aquela resistente a imigrantes, mas que não tinha qualquer justificativa plausível, já que, na opinião dele, o crime de um imigrante ilegal não é mais grave do que o de qualquer um.
Na eleição de novembro, os democratas ganharam mais duas cadeiras no Senado, então eles continuam a ter o número suficiente para bloquear iniciativas como essa novamente.
Trump e as cidades-santuário na Justiça
Se a legislação não é uma opção viável para Trump, alguns especialistas sugerem que levar as cidades para a Justiça é. Jessica Vaughan, diretora de estudos políticos no conservador Centro para Estudos de Imigração, diz que a administração de Trump poderia pedir a um juiz federal para que essas cidades-santuário fossem intimadas a entregar qualquer imigrante que o governo federal queira deportar. O que poderia ser argumentado é que é tecnicamente contra a lei proteger imigrantes ilegais da deportação.
Mas isso também é uma manobra arriscada. Desafiar a legalidade das cidades-santuário é algo que nunca foi feito antes. Não se sabe como as cortes iriam interpretar as ambíguas e, muitas vezes, contraditórias leis sobre os direitos dos estados e a imigração.
Alguns estudiosos da Constituição argumentam que esta é uma tentativa com 70% de sucesso, já que uma decisão recente da Suprema Corte americana afirmou ser inconstitucional que o governo federal seja “refém” de estados e governos locais.
Parece mesmo que a rota mais fácil para Trump derrubar as cidades-santuário é, provavelmente, também a menos efetiva. O Departamento de Justiça, sob a liderança do senador anti-imigração Jeff Sessions, do Alabama, poderia ajudar a dificultar o acesso das cidades-santuário às verbas federais.
Por outro lado, as cidades-santuário também poderiam, apesar de tudo, decidir continuar contrariando Trump – muitas cidades só anunciaram a intenção de serem cidades-santuário depois que Trump ameaçou cortar verbas desse tipo de cidade. “Eu gosto de comparar isso a uma questão de orientação jurídica e ética [quando alguém se recusa a fazer algo por princípios, religiosos, morais e/ou éticos]”, ironizou a prefeita de Oakland ao The New York Times, Libby Schaaf.
Mas também não é possível simplesmente isolar as cidades-santuário, adverte o professor da Faculdade de Direito George Mason Ilya Somin, já que a Suprema Corte já decidiu que não se pode impor condições para verbas federais sem dizer explicitamente e previamente aos estados quais são essas condições.
Além disso, todas essas opções de Trump têm em comum o fato de serem opostas ao pensamento dos conservadores. Livrar-se das cidades-santuário exige que um estado, o Congresso ou ainda o próprio presidente passe a interferir e ditar leis municipais. E isso pode ser uma coisa muito estranha para os republicanos apoiarem.
“O espetáculo do governo federal tentando deportar um grande número de pessoas em meio a uma resistência local dificilmente ajudará a criar uma boa imagem para a administração de Trump”, escreveu Somin num blog do Washington Post.
Trump tem opções para tentar estancar as cidades-santuário, mas nenhuma delas – legislação, Justiça, pressão financeira – são garantia de sucesso. Isso significa que algumas das maiores cidades dos Estados Unidos poderiam derrubar uma das maiores bandeiras da campanha de Trump, sem que ele possa fazer muita coisa para impedir isso.
Cidades-santuário reagem a anúncio de Trump
Segundo autoridades do distrito de Washington, o uso da palavra “fundos” poderia incluir uma gama ampla de assistência federal para a cidade, até mesmo os US$ 2,5 bilhões anuais de contribuições para os serviços de saúde, que equivalem a cerca de 20% do total das despesas anuais da cidade.
“Esta [o combate à imigração ilegal] é uma questão federal, e a administração federal não deveria deixá-la para as cidades”, disse o presidente do Conselho de Washington D.C., Phil Mendeslon. “Acho muito ofensivo que pessoas que não conseguem consertar a política de imigração federal tentem colocar o ônus disso em autoridades locais”, reforçou, evitando detalhar como a cidade reagiria às ordens de Trump.
Em meio a esse cenário de incertezas, durante uma coletiva de imprensa na noite da última quarta-feira (25), a prefeita do distrito, Murial Bowser, disse que D.C. permanecerá uma cidade-santuário. “Nossa cidade e nossos valores não mudaram no dia da eleição. Ser uma cidade-santuário significa que nós não somos um agente do governo federal... Significa que nossa política é poder focar na melhor forma de servir os residentes de Washington, protegendo-os e servindo-os, não importando seu status de imigração.”
O distrito de Washington está entre as muitas cidades democratas que decidiram abraçar a marca de cidade-santuário, mas há poucas como elas na região. Outras comunidades, incluindo Montgomery, Maryland e Baltimore, preferiram manter uma posição mais cautelosa na última quarta-feira (25), procurando não se classificarem como cidades-santuário, mesmo sendo assim consideradas pela população.
Já outras localidades foram até mais incisivas que Washington. O prefeito de Boston, Marty Walsh, por exemplo, prometeu um enfrentamento aberto, dizendo que ele usará todos os recursos da cidades para proteger os imigrantes ilegais residentes “mesmo que isso signifique usar a sede da própria prefeitura como último recurso para isso.”
O prefeito de Chicago, Rahm Emanuel, também prometeu não se curvar a Trump. “Nós continuaremos a ser uma ‘cidade-santuário’. Nós recebemos as pessoas, seja você da Polônia ou do Paquistão, da Irlanda ou Índia ou Israel, México ou Moldávia, que é de onde meu avô veio, você é bem-vindo a Chicago se quiser buscar o sonho americano.”
Em São Francisco, o prefeito Ed Lee expressou um misto de desafio e confusão sobre as ameaças de Trump. “Nós recebemos cerca de US$ 1 bilhão em verbas federais. Mas eu não tenho certeza, e nem o procurador da cidade, qual a finalidade delas e que parte está sob revisão neste momento.”
No início da noite de quarta-feira (25), mais de 400 manifestantes marcharam até a quadra da Casa Branca, cantando palavras de ordem em favor dos imigrantes e bloqueando o tráfego na 15.ª Rua NW. Eles desenrolaram banners que diziam “Donald Trump é um racista” e “Islamofobia mata”.
Entre os imigrantes sem documentação que apareceram estava Catalina Velasquez, uma mulher transgênero que vive no país há 15 anos e que recebeu proteção legal durante a administração de Obama por estar entre aquelas pessoas que vieram ilegalmente aos Estados Unidos ainda quando menores de idade. Ela diz que a família inteira foi deportada de volta para a Colômbia em 2009, e que ela teme se juntar a eles em breve porque enfrenta maiores riscos de violência e discriminação no país natal, por parte até mesmo de parentes. “Se eu for deportada, eu serei deportada para uma sentença de morte. Eu sou uma mulher trans, não é seguro para mim em nenhum lugar, mas aqui é onde estou mais segura”, disse Catalina, de 29 anos.