Stratis Valamios deu partida no motor do seu barquinho branco e, sob a luz da lua crescente, saiu do porto desse pequeno vilarejo pesqueiro no extremo norte de Lesbos, a terceira maior ilha grega. O céu estava limpo o bastante para que fosse possível ver as montanhas roxas da Turquia do outro lado do Mar Egeu. Na noite tranquila, seria fácil pescar lulas. Hoje em dia, a pesca tem que ser boa se ele quiser pagar suas contas regularmente.
Há um ano, ele e outros pescadores do pequeno vilarejo de Skala Sikaminias estavam pescando algo muito diferente: centenas de refugiados que tentavam atravessar o Mar Egeu fugindo do conflito e da pobreza no Oriente Médio e na África. Na qualidade de um dos territórios gregos mais próximos da Turquia, Skala Sikaminias, com seus 100 habitantes, logo se tornou o foco da crise, a primeira parada na Europa para pessoas que tentavam chegar à Alemanha na tentativa desesperada de começar uma nova vida. “Eu estava no mar e via 50 barcos ziguezagueando em minha direção. Corria na direção deles e eles jogavam as crianças no meu barco, para que eu pudesse salvá-las”, contou Valamios, observando o canal.
Atualmente, os refugiados praticamente pararam de vir. A costa, que já esteve repleta de coletes salva-vidas e barcos virados, retornou ao branco das areias. Mas o drama humano deixou uma marca profunda no local, e em toda a ilha de Lesbos, de um modo que começa a ser compreendido apenas agora (veja fotos do vilarejo). O vilarejo está quase sem turistas este ano, já que os alemães, suecos e outros visitantes que enchiam as águas cristalinas de Lesbos escolheram passar as férias em outro lugar, com medo de voltar a um lugar associado ao desespero humano. Os negócios nos hotéis e restaurantes da ilha sofreram uma queda de 80%, especialmente na faixa de 12 quilômetros entre Skala Sikaminias e a cidade de Molyvos, para onde foram muitos dos mais de 800 mil refugiados que sobreviveram à travessia no ano passado.
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Além de ser pescador, Valamios costumava suplementar a renda trabalhando durante cinco meses todos os anos no restaurante Mulberry, de Myrivilis, com vista para o bucólico porto onde pescadores consertam as redes amarelas à sombra dos oleandros, enquanto os gatos do vilarejo esperam pelo que sobrar dos peixes. Este ano, ele só teve um mês de trabalho, já que os clientes não apareceram. Quase mil gregos perderam seus trabalhos sazonais na região.
Entre as pessoas do vilarejo, existe um senso de incompreensão. Quando a crise dos refugiados começou de verdade, muitos se viram no papel de bons samaritanos. Com generosidade interminável, eles se uniam para resgatar sírios, afegãos e outros imigrantes em perigo, meses antes dos grupos de ajuda humanitária e dos governos europeus aparecerem para ajudar. “O vilarejo todo tem orgulho do que fizemos”, afirmou Theano Laoumis, que é um dos gerentes do restaurante To Kyma. Na praia em frente à empresa, barquinhos cheios de refugiados chegavam sem parar. “Não sabíamos quem salvar primeiro, havia tanta gente. Mas os salvamos. Era natural. Isso deveria melhorar nossa reputação, não o contrário.”
A queda nos negócios afetou Lesbos, justo quando a Grécia tenta sair da longa crise econômica. Algumas pessoas se queixam que a crise dos refugiados tornou a vida na região ainda mais difícil. “Eu não quero que eles voltem. Já prejudicaram muito o vilarejo e a ilha”, afirmou o pescador Nikos Katakouzinos.
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Nada de ressentimentos
Ainda assim, a maioria dos habitantes de Skala Sikaminias não culpam os migrantes. Muitas pessoas na região são descendentes de refugiados gregos que fugiram da Turquia em meio à guerra com a Grécia nos anos 1920. Hoje, eles ficam assustados quando alguém critica os sírios e outros povos que fogem de zonas de conflito e se arriscam na perigosa travessia do Mar Egeu, que também se converteu no cemitério de mais de mil homens, mulheres e crianças cuja jornada terminou em tragédia.
Depois que a chanceler Angela Merkel afirmou no ano passado que a Alemanha receberia os refugiados, milhares de barcos começaram a chegar. Em meio a uma crise política e econômica, o governo grego não estava preparado para reagir. Por isso, os pescadores do vilarejo entraram em ação, indo em direção a barcos que poderiam afundar a qualquer momento, enquanto ouviam gritos vindos da água.
“O povo ficou chocado – havia muitos bebês. Primeiro tirávamos os bebês, depois voltávamos para buscar os adultos. Muitas vezes não sabíamos se aquelas crianças ficariam órfãs”, recordou Valamios. Valamios parou, com o olhar cheio de dor. “Vimos muita gente morrer”.
Logo o vilarejo criou um sistema de resgate. Se alguém visse um barco em perigo, os pescadores eram alertados. Os moradores se reuniam na praia para receber os barcos e ajudar os sobreviventes, que chegavam a mais de cinco mil por dia durante um período. As mulheres, lideradas pelas avós do vilarejo, levavam os refugiados para uma casinha, onde recebiam roupas doadas e davam leite para os bebês.
Yorgos Sofianis era um dos que ficavam na praia. Ele é pastor de ovelhas e a partir de seu estábulo, no alto de uma montanha, era capaz de ver a chegada dos barcos. “No começo, até minhas ovelhas ficavam assustadas com os gritos. Mas assim como nós, elas acabaram se habituando”.
“Foi coisa de terceiro mundo. As ruas estavam cheias de gente. Algumas das crianças tinham as cicatrizes da guerra. Até quem odiava imigrantes mudou de opinião depois de ver aquilo.”
Com o verão chegando ao fim, o vilarejo ainda não conseguiu voltar ao normal. Vai demorar muito tempo para superar isso. As pessoas da cidade já não veem o mar da mesma forma. Quando observam o horizonte, muitos têm a impressão de ver mais um barco de refugiados chegando. E Valamios afirmou: “Temos de nos preparar. Se isso acontecer outra vez, todos vamos fazer a mesma coisa: vamos ajudar”.
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