Afonso sabe que é mau negócio, mas não vê outra saída. Paga dois salários mínimos por mês para manter a loja aberta. Quem impôs o preço foi o "dono" daquele pedaço de Piraquara, um dos recônditos sem lei no entorno de Curitiba. Ele até poderia fazer como outros empresários, inclusive da região central da capital, que cedem à extorsão policial para ter alguma segurança, mas o marginal está mais acessível. Se a polícia quase não aparece, o bandido está presente 24 horas. "Hoje você vive num mundo de Al Capone", diz Afonso. Essa é a lógica da venda forçada de segurança. Na Itália isso se chama máfia, no Rio é milícia, em Curitiba ainda carece de nome próprio.
Em Pinhais, também na região metropolitana, Onório paga R$ 100 toda vez que a viatura da Polícia Militar escolta o malote de dinheiro da sua empresa até o banco. Em Colombo, Isidoro dá mesada de R$ 200 aos policiais militares que fazem rondas mais assíduas na porta do seu comércio. Afonso não é o único a pagar bandido para ter proteção, Onório e Isidro não são os únicos a subornar policiais fardados. Com medo, só contam detalhes por meio de nomes fictícios, pois qualquer identificação de pessoas ou lugares resultaria em represálias. Pelo que fazem, são também causa e efeito do estágio pré-falimentar da segurança pública no Paraná.Em seu próprio favor, esses empresários usam o argumento da necessidade e do menor custo. Em última análise, sai mais barato pagar uma taxa fixa mensal aos marginais do que viver a instabilidade dos assaltos constantes. "O bandido vale o que ele quer, minha segurança vale o que ele pede", resigna-se Afonso. E a polícia? "Não dá pra contar com a polícia, tem de contar com o bandido pra te cuidar. Tem de pagar o bandido pra ele ficar te cuidando. E ele fica te olhando 24 horas. Se não pagar o salário em dia, aí você tem que arcar com as consequências", explica. "Não sou só eu, tem mais comerciantes. Quem não fizer é roubado", garante.
O exercício da extorsão começa cedo, de maneira nada ingênua. "Eles querem cigarro, querem um doce, escolhem um refrigerante, você tem que dar pra se livrar de ser assaltado", diz um dono de bar em Piraquara. "Se você se sujar com eles e não der, aí você tá perdido." São meninos entre 15 e 18 anos, discípulos de Al Capone que em vez do charmoso terno risca de giz usam camiseta e chinelo de dedo. São aprendizes dos gângsteres de periferia que, a exemplo daquele que extorque Afonso, controlam determinado território e se acham no direito de cobrar por proteção. Uma proteção é importante mencionar contra eles próprios.
Violência artificial
Não bastasse o assédio de bandidos ou de policiais corruptos, comerciantes de Curitiba e região têm sido vítimas de uma onda de violência artificial produzida por grupos que não têm como propósito o furto ou o roubo. Vândalos são contratados para depredar residências e arrombar lojas para, em seguida, alguém visitar as vítimas oferecendo vigilância. Quem se recusa a contratar os serviços volta a sofrer ataques. A Gazeta do Povo denunciou a prática há dois anos, mas o problema persiste. Mais comerciantes se somaram às vítimas. O valor cobrado varia conforme o porte da empresa. Desta vez a reportagem encontrou casos que variam de R$ 80 a R$ 900.
O caso do lojista Álvaro, da zona Sul de Curitiba, é um exemplo elucidativo do procedimento padrão que empresas clandestinas parecem seguir. A loja dele foi arrombada há oito meses. Levaram algumas mercadorias. Três dias depois, uma empresa pirata batia à porta oferecendo vigilância. Ele não fez caso. Preferiu instalar alarme. Duas semanas depois, a porta pantográfica foi arrombada. Passados cinco dias, outra pessoa surgiu com a mesma proposta. Na primeira vez poderia parecer coincidência, mas na segunda o golpe ficou evidente. Álvaro entendeu o recado. Acabou cedendo.
Não só ele se viu obrigado a vergar às pressões para não fechar as portas. No bairro Cajuru, um microempresário, que nem por nome fictício quer ser identificado, diz não ter encontrado alternativa. A loja de materiais de construção foi arrombada três vezes. Não levaram quase nada, e ele só entendeu do que se tratava quando o mesmo sujeito apareceu pela segunda vez oferecendo serviços de segurança. O comerciante resistiu mais uma vez, mas no terceiro arrombamento fez as contas e concluiu que seria mais barato ceder à extorsão do que ficar pagando os consertos da loja. Ele se sente refém dos gangsteres de periferia que criam o problema para vender a solução.
Esses grupos atuam mais nas periferias da capital e cidades vizinhas. No anel central de Curitiba mas não só ali a máfia da segurança usa farda e insígnia. Para se proteger dos criminosos, comerciantes encontraram uma alternativa igualmente fora da lei: contratam policiais para trabalhar no horário de folga, o que é proibido pelo regimento da Polícia Militar. Outros, como Onório e Isidoro, usam até a estrutura da corporação. Em Fazenda Rio Grande, a representante de uma loja de artigos populares, que paga policiais fardados para dar segurança no fechamento de caixa, dá o tom da desfaçatez: "O que tem de errado nisso?", disse à reportagem.
Geralmente são os próprios policiais que fazem a abordagem, revela uma empresária. Depois de registrar o assalto à loja, um PM esperou os colegas saírem para oferecer seus préstimos. Ela não aceitou, embora soubesse que outros fazem. "Ele já é pago com dinheiro público para nos dar segurança, então seria como pagar duas vezes", diz. Há comerciantes que preferem o meio-termo. Não entregam dinheiro, mas fazem agrados aos policiais para tê-los com mais frequência na porta da loja. Tem açougue que dá carne, lanchonete que fornece lanche, supermercado que doa alimentos.
Inversão de papéis
Os novos arranjos na segurança pública inverteram alguns papéis no Paraná. Em vez de prender criminosos, policiais agora disputam com eles o mesmo mercado clandestino de vigilância. O assunto não é exatamente novidade para as autoridades do setor. Há dez anos o Sindicato dos Vigilantes do Paraná tem denunciado a atuação ilegal de policiais no ramo da segurança privada. "Não há mudanças porque parece que o comando da Polícia Militar faz vistas grossas", diz o presidente do sindicato, João Soares. "Enquanto isso a marginalidade continua crescendo nas periferias, onde comerciantes contratam até bandidos para cuidar do seu estabelecimento", constata.
"A coisa mais comum é você ir num supermercado, numa farmácia, numa casa lotérica, num posto de gasolina e ver viaturas da Polícia Militar fazendo segurança privada. Principalmente à noite, na hora de fechar o caixa", afirma Soares. "Isso não é de graça, não. Isso é pago para os policiais", confirma. "Por isso a gente vê constantemente as pessoas reclamando que precisam de uma viatura para atender uma ocorrência e leva uma hora, uma hora e meia para ela chegar ao local do incidente", observa. "Polícia é para proteger o cidadão, para isso nós pagamos nossos impostos. Segurança privada é outra coisa."
Soares denuncia não só a concorrência desleal dos policiais, mas o risco à segurança pública. "O policial que faz bico não descansa no dia de folga e vai para as ruas cansado, estressado, muitas vezes prestando um mau serviço à sociedade", diz. Ele lembra ainda que empresa séria não bate de porta em porta para vender serviço de vigilância. "Quem fizer isso deve ser denunciado à Polícia Federal", diz. Segundo ele, instalar o caos em determinada região para depois oferecer esses serviços é uma prática muito frequente. O perigo pode ser grande para quem contrata segurança pirata.
De acordo com o Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Paraná (Sindesp), empresas clandestinas não têm critérios, contratam pessoas sem habilitação, sem curso de formação, não recolhem encargos sociais, não dão seguro de vida aos funcionários. Em 2008 o Sindesp encontrou na Junta Comercial 650 registros de empresas de segurança no estado, mas só 72 tinham autorização da Policia Federal para atuar. As empresas regularizadas hoje somam 88, mas o sindicato não sabe informar se depois disso o número de clandestinas aumentou ou diminuiu. A meta da diretoria empossada há uma semana é aumentar para 150 o número de regularizadas até 2014.