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A adoção do “afastamento excepcional de garantias individuais”, como fez o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, é próprio de países autoritários e coloca em risco a liberdade dos cidadãos, segundo juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. A expressão aparece em duas decisões de Moraes, até então sigilosas, mas recentemente divulgadas no relatório da Câmara dos Estados Unidos, que acusa o ministro de cometer censura contra a direita. A Constituição Federal estabelece de forma clara e precisa as condições para o afastamento dos direitos individuais, as quais não foram observadas por Moraes.
“É imprescindível a realização de diligências, inclusive com o afastamento excepcional de garantias individuais que não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, apontou Moraes. O parágrafo no qual a expressão aparece é semelhante na decisão contra a Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB) e contra o influencer Monark.
“Sempre que se estabelecem exceções não previstas na Constituição aos direitos e garantias fundamentais, certamente, existem riscos à liberdade. Aliás, essas garantias e direitos existem justamente para que o Estado não esmague a liberdade individual. Passar por cima dessas garantias é característico de regimes políticos que estão se afastando da democracia e do Estado Democrático de Direito”, avalia Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP.
Ana Luiza Rodrigues Braga, professora de Direito Constitucional e doutora em Teoria Geral do Direito pela USP, também ressalta a importância das garantias fundamentais em uma democracia. “As garantias individuais são exatamente o que fazem com que se tenha muito clara a diferença entre o estado democrático e o estado autoritário. Em um estado democrático, essas garantias individuais são limites intransponíveis ao poder. Seja ele o Poder Executivo, o Judiciário ou o Legislativo”, reforça.
“Nem crimes hediondos tiram direitos fundamentais”, afirma jurista
“Mesmo pessoas que cometem crimes hediondos, como estupro e homicídio, não têm suas garantias individuais suspensas nem afastadas em qualquer hipótese. Elas continuam tendo direito, por exemplo, aos meios judiciais possíveis para garantir os seus direitos fundamentais”, acrescenta Braga. Ela explica que a base dos direitos e garantias individuais é a dignidade da pessoa humana. Ou seja, ainda que se cometa um crime grave, essa pessoa – ainda que criminosa – tem prerrogativas básicas que devem ser respeitadas.
Para Moraes, a OACB se enquadrava, preliminarmente, em nove crimes como terrorismo e associação criminosa armada. A instituição teria relações com os “atos antidemocráticos do 8 de janeiro”. O fato de a OACB ter divulgado em sua conta no Twitter, em 10 de janeiro, que um participante dos atos teria falecido, o que não é verdade, levou Moraes a enquadrar a instituição também por divulgar fake news.
O tuíte da OACB ganhou repercussão, pois parlamentares acabaram replicando a informação ao confundir a associação com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Posteriormente, a Polícia Federal informou que o fato não ocorreu. Além da suspensão de perfis da OACB em seis redes sociais, Moraes decretou outras medidas como a suspensão imediata das atividades jurídicas da OACB e a proibição da utilização da sigla “especialmente para disseminar fake news contra o Estado Democrático de Direito e contra as suas Instituições”.
A outra decisão na qual consta a expressão contra os direitos fundamentais tinha como alvo o influencer Monark. Segundo Moraes, a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (AEED/TSE) detectou “notícias falsas sobre a integridade das instituições eleitorais” em um vídeo no qual Monark entrevista o deputado federal Filipe Barros (PL-PR).
“Por que ele [TSE] está disposto a garantir uma não transparência nas eleições? A gente vê o TSE censurando gente, a gente vê o Alexandre de Moraes prendendo pessoas, você vê um monte de coisa acontecendo, e ao mesmo tempo eles impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado, que maracutaia está acontecendo nas urnas, ali?”, comentou Monark no vídeo.
“A gente tem de fato a ausência de evidência de que essas pessoas tenham cometido crimes. O que se vê é simplesmente o uso de um direito fundamental chamado de liberdade de expressão. Liberdade de expressar as próprias preferências políticas ou suas discordâncias com o Poder Judiciário ou com o governo. Ou seja, se mesmo pessoas que cometem crimes não têm suas garantias individuais afastadas, avalie pessoas que não cometem, como é o caso”, analisa Braga.
Garantias fundamentais só podem ser afastadas em estado de defesa ou estado de sítio
“A única possibilidade de limitar-se, temporariamente, direitos fundamentais, encontra-se na própria Constituição Federal, nos artigos 136 a 141, que tratam do estado de defesa e do estado de sítio – estados de exceção constitucionalmente permitidos”, explica o professor Chiarottino. Segundo ele, essas limitações mesmo quando licitamente estabelecidas, como está previsto, devem ser tomadas de forma colegiada. “Resumindo: a nossa Constituição não admite o afastamento de direitos e garantias fundamentais em outras hipóteses, muito menos pela iniciativa individual de um magistrado”, acrescenta.
O artigo 136 da Constituição Federal deixa claro que apenas o presidente da República poderá restringir direitos em estado de defesa. O dispositivo ainda ressalta que devem ser ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Para decretar estado de sítio (art. 137), é ainda necessária a aprovação do Congresso Nacional.
“Nesse caso, é um ministro que está excepcionando garantias individuais dentro de um inquérito sigiloso, no qual as pessoas não têm nem possibilidade de ter acesso às informações”, complementa Ana Luiza Rodrigues Braga.
“Os artigos 136 a 141, que eu mencionei, estabelecem exatamente a maneira constitucional de se lidar com ameaças no Estado de Direito. Então, a própria Constituição já faz essa previsão de quais são os meios de quando tivermos uma perturbação na ordem social ou política que exigem medidas excepcionais”, esclarece Chiarottino.
Para Chiarottino, ao “atuar fora dessas medidas previstas, já não se está mais defendendo o Estado de Direito, mas se está colocando em risco o próprio Estado de Direito”.