Entrevista com Ricardo Balestreri, secretário nacional de Segurança Pública.
Há 2 anos como secretário nacional de Segurança Pública, o historiador Ricardo Balestreri vem fazendo uma pequena revolução na segurança brasileira. Critica o modelo arcaico e a falta de gestão inteligente do setor, passou a investir pesadamente em formação e fez com que o Brasil tenha hoje o maior programa de educação policial do mundo, com 200 mil profissionais estudando. Os gastos com segurança, no entanto, ainda são insuficientes. O R$ 1,5 bilhão investido atualmente no Brasil precisaria subir para R$ 8 bilhões, diz ele.
Há um ano o senhor disse que a segurança pública no Brasil era um desastre. Por quê?
A história brasileira da segurança pública construiu um sistema afeto à defesa de segmentos da elite e dos poderosos, focada na contenção dos pobres e na proteção dos ricos. Isso começou a acontecer na raiz da segurança brasileira, que foi estruturada na caça aos escravos com o capitão do mato. Tal fato chegou aos dias contemporâneos, nos últimos 40 anos, com uma profunda contaminação pela ditadura militar. Com a recente democracia brasileira, temos o desafio de mudar a estrutura da segurança pública. Há várias questões para se debater. O primeiro ponto é que o tempo histórico desde o fim da ditadura é considerado curto, o Brasil herdou uma tradição assistêmica na segurança, sem sistema nenhum, montada com base na intuição, no amadorismo e empirismo, sem um substrato teórico-científico.
A afirmação não é contraditória, pelo fato de o senhor ser o responsável pela área?
Algumas pessoas quando fiz esta declaração diziam que eu estava dando um tiro no pé, por ser o secretário nacional de segurança pública. A gente não dá um tiro no pé quando reconhece a realidade. O desafio que a nossa geração de gestores, uma geração democrática, herdou é dar à segurança pública uma cara da democracia e do conhecimento. Como vamos fazer isso? Com truculência? Não, se truculência resolvesse algo, não teríamos problemas nenhum e o Brasil seria um paraíso. Um país que tem mais de 45 mil homicídios por ano tem uma situação trágica de segurança pública. A saída não é apagar incêndio, fazer o que sempre se fez e resolver as questões em cima de tragédias. Sabemos cientificamente o que dá certo em segurança pública e o que não dá, sabemos o que são demagogia e eficácia. Este é um momento histórico, para superar a demagogia, a política para inglês ver e a cultura do espetáculo.
O que está sendo feito para mudar este quadro?
Herdamos um sistema que investia 3,5% ao ano em média em capital humano, como guardas municipais e policias civil e militar, e hoje estamos investindo mais de 60% de nossos recursos nesta área. Qualquer empreendimento humano está fadado ao sucesso ou fracasso dependendo deste investimento. Quem pode fazer uma boa política de segurança pública senão os operadores? Isso não significa que vamos deixar de comprar armas e viaturas, mas precisamos ter prioridades. Se não tenho um policial bem formado, não adianta ele ter uma arma de ultima geração que vai fazer um mau trabalho. Esse policial ganha mal, não está assistido psicologicamente, tem formação precária e a culpa não é dele, é do sistema que não ofertou.
O papel do governo federal, e aí afirmo que demos um grande salto na gestão pública, é dizer: esse problema também é nosso. Não cabe mais aquele discurso histórico de que isso é papel somente dos estados. É responsabilidade dos estados, mas também do governo federal. Aumentamos o investimento e precisamos investir cada vez mais e de forma inteligente. Precisamos, além de bons equipamentos, de profissionais preparados. Para sanar esta questão, o maior programa do Ministério da Justiça é voltado para a formação.
Outra grande ação foi a criação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública. Um braço é a educação à distância, com cursos humanísticos e técnicos. Há 200 mil matriculados, sendo que 170 mil recebem uma bolsa mensal para estímulo aos estudos. Isso é quase um terço de toda a força policial no país. Este é o maior programa de educação policial em todo o mundo. O outro braço é a rede de especialização universitária em segurança pública. São 80 cursos de especialização lato sensu em todos os estados e mais de 5 mil especializandos por ano, formando uma nova geração de líderes para os agentes da segurança. Em três ou quatro anos, teremos uma massa crítica com conhecimento acadêmico.
Há programas previstos para as fronteiras e regiões distantes dos centros urbanos, que acabam sempre esquecidas?
Temos um programa de aviação em segurança. Precisamos chegar no que chamo de Brasil profundo, que é um pedaço do país que ficou esquecido, localizado no meio da selva, do sertão, rotas por onde chegam a violência. E como se chega lá? Não há estradas ou rios navegáveis. São locais aonde só se chega pelo ar. Para isso estamos comprando helicópteros e hidroaviões.
A tradição sempre foi focar nos grandes centros urbanos, mas a violência que chega a Curitiba passa por Foz do Iguaçu, da mesma forma que a do Rio passa por Mato Grosso. As armas de longo alcance, que alimentam o narcotráfico, não brotam aqui. O Brasil durante anos não teve uma política de segurança pública nas fronteiras. As forças armadas estão lá, mas este não é o papel delas. Criamos a policia especializada em fronteiras, a PFron, e estamos estruturando este setor.
Mesmo com os avanços ainda há muito a ser feito. Quais são os próximos passos?
O primeiro passo é investimento. Segurança pública custa caro. O Brasil sempre investiu horrivelmente, mas nos últimos 3 anos aumentamos em cinco vezes o orçamento. Hoje gastamos cerca de R$ 1, 5 bilhão, entretanto precisamos chegar em R$ 8 bilhões. O segundo ponto é começar a investir imediatamente um em um programa de fronteiras marítimas. Se fecharmos as fronteiras secas, como já estamos fazendo, vai haver uma natural migração para a fronteira marítima. Hoje a atividade criminosa no mar ainda é pequena, mas precisamos nos antecipar. No Brasil não existe guardamento marítimo. A Marinha não faz segurança pública, faz guarda de território, não é polícia. Precisamos urgentemente estruturar uma guarda-costeira, como há em qualquer com grande contingente costeiro. É impressionante olhar para o mapa brasileiro e pensar que o país nunca teve uma guarda-costeira. Do ponto de vista da administração é algo surreal. Outro grande avanço necessário é a mudança na estrutura das policias. Precisamos dar uma face democrática a esta instituição. É uma discussão sobre o papel das policiais, adequação do perfil, divisão das tarefas de uma maneira mais clara, mais autonomia aos órgãos policiais. Isso começou a ser feito na Conferência Nacional de Segurança Pública. E isso não é uma crítica aos policiais, porque eles arriscam suas vidas muitas vezes com pouco amparo. É uma crítica ao modelo. Esta reforma passa por toda a sociedade, não é só uma decisão do Executivo.
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