Digite "1919" no banco de imagens da internet, e pronto. É o que basta para encontrar fotografias de mulheres vestidas demais, famílias posando para as máquinas como se fossem cabeças coroadas de alguma casa real europeia. E muitos, mas muitos carros e "arranha-céus" de míseros 5-6 andares, ambos tão frufrus que parecem feitos à mão. Embora fosse ainda tímido se comparado a hoje, o progresso nos anos 1910-1920 beirava a luxúria. "Um desacato", dizia-se.
Havia buzinas e elas eram tão amadas quanto o apito das fábricas. Cinematógrafos a projetar ideias e virar cabeças. Telefones e telefonistas encurtando o mundo na base da conversa. Danças diabólicas que faziam sacolejar a franja das saias, sendo um sinal tanto quanto a energia elétrica de que o futuro tinha desembarcado deliciosamente hiperativo, disléxico e bipolar. Chegava sem distinção, nas estações nova-iorquinas e em rincões modestos do globo. Antonina, quem sabe.
Com tantas manchetes a fundir no fogo os tipos móveis, foi um bom ano para fundar um jornal. Foi o ano de nascimento da Gazeta do Povo, há 94 anos, desde então sem descanso. Ainda que tenha nascido numa Curitiba de parcos 80 mil habitantes menos do que o atual bairro do Cajuru o "diário", como se dizia, surgiu para atender uma região que, como tantas, viveria as paixões dos tempos modernos. Viver era contar. Contar era noticiar. Foram notícias o bastante para chegar à Lua, tanto papel fugazes como Félix, líricas como Chaplin, trágicas como Mussolini.
Não é demais dizer que a história de um jornal é a história do lugar onde circulou, dos leitores que teve e dos sentimentos que os moveram a sair de casa e despejar uns vinténs no colo do pequeno jornaleiro, fazendo desse gesto seu maior poder. O tempo, esse velhaco sempre novato, fica bem quando impresso em apressados clichês, debaixo de tensões de máquinas que podem pifar e de editores prestes a surtar, como chaleiras apitando. São ambos imperfeitos, acumuladores, assoberbados, superlativos e falantes incorrigíveis. Querem tudo agora, e em porcentos. Amanhã estão de volta.
Daquele 3 de fevereiro em que Benjamin Lins e De Plácido e Silva mandaram para o prelo a primeira matriz de uma Gazeta do Povo ainda guria, até hoje, foram mais de 30.360 edições, 30 governadores de estado, saltos populacionais que chegaram a 102% numa única década. Teve mate. Teve café. Teve soja. Entre folhas e grãos, acumularam-se umas tantas camadas geológicas de mudanças sociais e comportamentais, feitas a fórceps, expressas em passeatas e comícios na Rua XV, em saltos 15 e granjas loiríssimas, batas hippies e gírias que sempre soam mais estranhas do que são quando ditas com o sotaque daqui. Bacana.
São de lembrar o boom econômico do Norte Pioneiro e do Norte Novo. O Paraná que foi se redesenhando a partir de 1963, quando as geadas e queimadas deram sinais de apocalipse na economia. Uma página virou com o fim anunciado das Sete Quedas de Iguaçu, fato que dividia atenção no noticiário com as prosaicas enchentes do Rio Ivo e com o nu frontal de Norma Bengell em Os cafajestes. Que Ivo entrasse pelo cano. E Norma para Copacabana. No mais, iê-iê-iê, as misses, as intermináveis reformas na Avenida Marechal Deodoro conhecida como as Ruínas de Pompeia , o sarro tirado da Praça do Japão, "verdadeira cratera lunar". Isso é jornal, a menor distância entre o universo e um quintal do Umbará.
Outra página se inaugurou quando os curitibanos superaram seus complexos de moradores de uma terra gelada e tão cheia de limbo quanto um paralelepípedo do Largo da Ordem. Foi na década de 1970. A Gazeta estava lá, para registrar a segunda dentição. Canaletas, parques, os Vermelhões, o Calçadão, tudo tinindo de novo debaixo da maior das tiranias a ditadura militar, tirando o gosto dos Plocs e das Crushs.
Tal como em 1919, tudo muito estranho, mas para isso existe o jornal, para lidar com as contradições. As dos Atletibas que nos deixam nos nervos. As que fazem o número de favelas saltarem de 35 para 250 em 40 anos. As que nos fazem pensar se queremos ir de biarticulado ou de metrô. As que fazem espernear a cada vez que uma casa que testemunhou o século dá lugar a um feio edifício fumê.
O jornal não deixa ignorar. Aos 94 anos, mais do que isso, não deixa esquecer. Digite "2013".
** José Carlos Fernandes é autor de Todo dia nunca é igual, sobre a Gazeta do Povo, em parceria com Márcio Renato dos Santos.