Membros do antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), chefiado pela senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) durante a maior parte do governo de Jair Bolsonaro (PL), estão preocupados com a possibilidade de que a atual gestão dos ministérios das Mulheres e dos Direitos Humanos e Cidadania descarte programas importantes da pasta realizados entre 2019 e 2022. A extinção de algumas políticas que dialogam pouco com a cartilha petista já era esperada, mas há o temor de que até mesmo os programas ideologicamente neutros sejam abandonados por puro revanchismo.
No campo das políticas para famílias, por exemplo, teme-se que uma mentalidade de tábula rasa resulte no descarte de projetos com foco no fortalecimento familiar. “Estamos plenamente convencidos de que o que foi feito na Secretaria Nacional da Família ao longo desses quatro anos são coisas de política de Estado, e não de governo – ou seja, estão acima do partidarismo político. Claro que havia as nossas prioridades, mas são ações que poderiam ser mantidas por um governo que esteja numa posição diferente do espectro político. A gente optou, desde o início, por tomar como ponto de partida aquilo que é mais consensual”, explica Marcelo Couto Dias, ex-diretor do Departamento de Formação, Desenvolvimento e Fortalecimento da Família, órgão da Secretaria Nacional da Família do extinto MMFDH.
Um dos principais programas da antiga pasta, o Famílias Fortes, promove a educação parental como caminho para diminuir a violência, o vício em drogas, o abandono escolar e a gravidez precoce. “O Famílias Fortes foi recomendado para o Brasil em 2013 pela ONU (Organização das Nações Unidas), através do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Não foi nenhuma organização conservadora de direita, nenhum think tank desse tipo que recomendou. É um programa que já estava no Brasil desde 2014. Fizemos um trabalho significativo no sentido de ampliar o alcance”, diz Couto Dias.
Ao longo das últimas décadas, diversas pesquisas comprovaram a correlação entre vínculos familiares saudáveis e um menor risco de envolvimento com violência e drogas na juventude. Em um estudo de 2016 do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, por exemplo, descobriu-se que a atenção dos pais e o interesse deles pela educação dos filhos diminuem de forma significativa as chances de delinquência juvenil. Na mesma linha, uma pesquisa de 2008 da Universidade de Connecticut mostrou que o sentimento de proximidade com os pais reduz consideravelmente a probabilidade de alcoolismo e uso de drogas entre jovens.
Outro programa da Secretaria da Família, o Reconecte, tem diversos aspectos que poderiam ser aproveitados independentemente de questões ideológicas. Seu objetivo é melhorar as relações familiares por meio de um uso mais moderado e consciente das tecnologias de comunicação. O programa capacita pais, professores e profissionais de saúde para ajudar crianças e adolescentes a fazerem melhor uso dos dispositivos eletrônicos.
Em outro projeto do antigo governo, o Família na Escola, o Estado busca promover a parceria entre a família e a escola, com formação de habilidades parentais e apoio para o acompanhamento pedagógico, com o objetivo de fortalecer vínculos familiares. A antiga gestão espera que esses dois projetos sejam preservados pelo novo governo, mesmo que mudem de pasta (há, por exemplo, a possibilidade de transferi-los para o Ministério da Educação).
“Nós temos a esperança de que haja um foco no bem comum nesse sentido e de que não descontinuem esses programas”, afirma Angela Gandra Martins, ex-secretária da Família.
Secretaria de Pessoas com Deficiência diminui pela metade em relação à gestão de Damares
Uma das principais críticas de ex-membros da pasta de Damares é quanto ao corte nas políticas para pessoas com deficiência. O número de cargos de confiança da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNDPD), por exemplo, diminuiu de 27 para 14.
Além disso, a SNDPD terá somente um departamento, em vez dos dois que tinha até dezembro, e o número de suas coordenações gerais passará de sete para cinco. Fontes ouvidas pela Gazeta do Povo temem que as coordenações gerais de Doenças Raras e de Hanseníase deixem de existir. Isso poderia limitar o caminho de pessoas com doenças raras para a conquista de direitos.
No caso da hanseníase, a coordenação geral é o principal caminho para julgar processos de pedido de indenização de pessoas que, quando crianças, foram afastadas do convívio com seus pais por conta de políticas públicas equivocadas de combate à hanseníase. Entre a década de 1920 e a de 1980, o governo segregou algumas crianças de seus pais com hanseníase como medida profilática, e muitas dessas crianças chegaram a parar em orfanatos por conta disso.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com o novo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania para tirar dúvidas sobre as mudanças em curso. A nova equipe afirmou que a pasta ainda está em processo de montagem e que dará um retorno “em um momento oportuno”. Há a previsão de que as novas secretarias comecem a atuar no dia 24 de janeiro.
Ex-ministra, que também foi secretária para Mulheres, critica mentiras sobre sua gestão
Membros do antigo MMFDH têm se incomodado com o discurso do atual governo de que havia descaso da gestão passada com os direitos humanos. A narrativa de que o governo Bolsonaro teria promovido um desmonte das políticas para essa área, e que o novo governo vai recuperá-las, provoca indignação em pessoas que trabalharam na pasta entre 2019 e 2022.
Cristiane Britto, ex-ministra e ex-secretária de Políticas para as Mulheres, critica, por exemplo, a falsa informação de que a Casa da Mulher Brasileira estaria sendo “retomada”, como divulgou a ministra da Mulher, Cida Gonçalves, em seu discurso de posse, dando a entender que a iniciativa havia sido abandonada. Durante a gestão de Cristiane, o investimento na Casa da Mulher Brasileira aumentou.
“A minha impressão é que eles vão pegar o que a gente já construiu e vão dizer que foram eles que construíram. Por que abrem a boca para falar, por exemplo, que nós paralisamos as obras da Casa da Mulher Brasileira? Isso é um absurdo, porque as obras estão aí para todo mundo ver. O que eles vão fazer? Vão inaugurar, por exemplo, nove casas que a gente, eu e a Damares, deixamos para serem inauguradas agora no mês de março (de 2023), mês da mulher”, afirma Cristiane.
A ênfase do discurso de posse de Cida na narrativa de que houve descaso com a população feminina irritou ex-membros da pasta de Damares, que veem nas políticas para mulheres justamente um dos grandes trunfos do governo Bolsonaro na área dos direitos humanos. O aprimoramento e a modernização dos serviços de ouvidoria como Disque 100 e Ligue 180, por exemplo, foram fundamentais para facilitar denúncias de violência contra a mulher.
Ainda assim, os antigos integrantes da pasta esperam que alguns de seus programas sejam preservados. O Qualifica Mulher, por exemplo, que promove a autonomia econômica das mulheres, pode mudar de nome, mas há a expectativa de que ele seja mantido.
Outros programas, no entanto, devem ser eliminados. Cristiane lamenta, por exemplo, o fato de que o Mães do Brasil deverá acabar. O programa ampara mulheres com problemas no exercício da maternidade, desde a concepção até a primeira infância. “A gente entrava com a rede de apoio, pela saúde da mulher. Se a mulher simplesmente não quisesse ter o filho, não quisesse criar o filho, a gente apresentava para ela a opção da adoção. Isso era o Mães do Brasil, que a gente trabalhava em parceria com o Ministério da Saúde, para cuidar das gestantes em situação de vulnerabilidade”, afirma a ex-ministra.
Por razões ideológicas, é provável que o atual governo descontinue o programa. Cida Gonçalves, ministra da Mulher, é favorável à legalização do aborto.
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